Autorretrato (manteau rouge) é um quadro pintado por Tarsila do Amaral em 1923. Nele, a artista se representa de frente para o observador, vestida com um casaco vermelho escuro – manteau rouge significa casaco vermelho em francês – de gola larga e circular e decorado por flores. A obra se tornou uma das mais célebres da pintora.
Nele, a artista se representou de maneira muito diversa daquela que mulheres costumavam ser representadas em telas. Não apenas no uso das cores e traços mas também na construção de sua própria figura, ou seja, sua postura e partes corporais.
Autorretrato (manteau rouge) faz parte do acervo do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro.
A produção de Autorretrato manteau rouge
Em 1923, ano em que Autorretrato (manteau rouge) foi pintado, Tarsila do Amaral já passara alguma temporadas em Paris, como estudante. Frequentando aulas com artistas como Fernand Léger, Lohte e Albert Gleizes. Naquele ano, por exemplo, Tarsila teve a satisfação de mostrar seu quadro A Negra para o professor Léger e ser considerada por ele uma aluna “muito adiantada.” Estudante dedicada e bem relacionada com um considerável circulo de artistas reunidos na capital francesa, Tarsila, décadas depois, rememorou aquele ano:
“Paris de 1923! As recordações fervilham, amontoam-se atropelando-se… Meu ateliê da rua Hégésippe Moreau, que Paulo Prado descobrira ter sido habitado por Cézanne, foi frequentado por importantes personagens. (…) “1
Personagens importantes que, além de alguns de seus mestres, incluíam poetas, pintores e artistas como Sonia e Robert Delaunay, Blaiser Cendrars, Constantin Brancusi, Ambroise Vollard, Erik Satie, John dos Passos, Villa-Lobos e outros.

O hoje célebre casaco vermelho com o qual Tarsila se retratou, foi usada pela pintora em uma de suas muitas reuniões, em Paris, com seus amigos da classe artística. O almoço foi ideia de Oswald de Andrade e oferecido pelo embaixador brasileiro na capital da França Souza Dantas. Sobre a ocasião, Tarsila escreveu uma carta para a família contando:
(…) Há oito dias tivemos o almoço com o Embaixador. A elite dos artistas franceses e uma elite brasileira. Ao todo 14 pessoas. Chez Joseph. Mesa régia, borbulhando rosas. Giraudoux, escritor notável e diplomata eminente, ao lado direito do Embaixador. Eu à esquerda, a única mulher. Durante o almoço fui distinguida com um lindo ramo de rosas apresentado numa bandeja de prata, da parte do Embaixador. Cendrars, o grande poeta, mutilado de guerra, à minha esquerda para que eu cuidasse em servi-lo, cortando a carne, etc. Ele só tem o braço esquerdo. (…)
Depois do almoço, fui com um grupo de artistas, ao ateliê de Léger que também fez parte da nossa mesa. Depois, cada qual para a sua casa. Fui lindamente vestida por Patou, com um chapéu de 350 frs. Muito lindo. – Estive, um dia antes, num jantar dos artistas do Salão das Tolherias. Muita gente. Artistas de valor e outros medíocres. Estreei o meu vestido amarelo de chez Patou. Parecia uma rainha. Todos os olhares convergiram para mim (…)2
No trecho de sua carta, temos uma serie de indícios da vida de Tarsila em Paris, seu posicionamento enquanto artista e brasileira. Nota-se por exemplo, como o espaço ocupado por Tarsila ainda era majoritariamente masculino, já que ela era a única mulher do grupo artístico. Vê-se também sua considerável inserção não apenas na sociedade brasileira – pois tinha contato com um embaixador – mas também um certo grupo de artistas franceses.
Vemos também como as roupas de Tarsila a ajudavam a se distinguir no meio em que circulava. O vestido, do estilista Patou, ao qual a pintora se refere quando descreve o almoço com o embaixador, é justamente o mesmo que Tarsila aparece vestindo no seu Autorretrato (manteau rouge) daquele mesmo ano de 1923.Três anos mais tarde, o mesmo Patou faria o vestido que Tarsila usaria em seu casamento com Oswald.

Elementos e critica de Autorretrato (manteau rouge)
Dos muitos pesquisadores e críticos que analisaram a obra de Tarsila e em especial seu Autorretrato (manteau rouge), a grande parte deles afirma a diferenciação do quadro com relação aos outros autorretratos que a artista fizera até então. Sergio Miceli, por exemplo, em seu livro Nacional estrangeiro. Historia social e cultural do modernismo artístico em São Paulo, afirma:
“Da sua fase de estudos com André Lhote (1885-1862), duas obras merecem destaque pelas marcas dos desafios que começara a enfrentar. O casacão purpura com que ela se autorretratou na tela manteau rouge […] emoldura com imensa gola bufante e os dois florões de arremate a imagem luminosa de uma Tarsila deslumbrante e que mira o espectador com olhos sombreados em azul, lábios desenhados, o colo, o pescoço e o rosto a compor um triangulo de pele macia. Um retrato sob medida para a atender as exigências de representação reiteradas pelo companheiro, poeta e herdeiro especulador [Oswald de Andrade]”3
Nadia Gotlib, que em 2000 publicou o livro Tarsila do Amaral: a modernista, também destacou a importância do quadro:
“A pintora surge aí [em manteau rouge] na sua elegância imponente, realçada pelo contraste entre o azul do fundo e o vermelho do casaco, o qual usou, alias, no jantar em homenagem a Santos Dumont, em Paris. A gola demarca, geometricamente, o centro do quadro, em forma ovalada, de onde emergem o colo a cabeça. A disposição da figura parece ensaiar futuras opções formais a serem adotadas no posterior autor retrato de 1924″4
Autora de um doutorado sobre artistas mulheres, So Ra Lim também se debruçou sobre Autorretrato (manteau rouge). A pesquisadora também se debruçou sobre os autorretratos que Tarsila pintou durante a década de 1920 e concluiu que a obra de Autorretrato manteau rouge inaugura uma nova forma da artista se representar:
“Ao se exibir, pondo em relevo certas marcas de ser mulher – o brinco, exagerado em Autorretrato I, e a gola, avolumada em Manteau Rouge -, a pintora torna as características estereotipadas do gênero feminino em seu oposto. Desobedece uma expectativa de feminilidade […]. Assim sendo, Tarsila está a transforma-se em um sujeito produtor, não mais apenas um modelo.”5

Autorretrato (manteau rouge): uma obra feminista?
Lucia Teixeira, em artigo de 1991, talvez tenha sido a pesquisadora com a leitura mais feminista de Autorretrato (manteau rouge). Por se tratar de um exame detalhado da obra, apontaremos apenas alguns de seus pontos. Um deles é a forma como Tarsila se utilizou tanto das cores bem como sua técnica ao aplica-las na tela. Ambos os aspectos estão em jogo na execução da peça vermelha no obra e lhe dão destaque:
“O efeito de esfumaçamento do carmim, criado pelo pincelada ora aparente ora diluída, movimentando-se em diferentes direções, mais o contraste cromático com a cor da pele, criam o efeito de volume da gola que, constituída em elipse, cerca mas não aprisiona o corpo.”6
A pesquisadora ainda nota como toda o autorretrato foi executado com cuidado e controle, no qual Tarsila produz um retrato feminino em seus próprio termos: “(…) essa mulher que se pinta preenche-se de materialidade cromática, para realçar detalhes e formas que saturam sua imagem de mulher. Essa mulher abre o decote, mas encobre o contorno do corpo, mostra uma das mãos e esconde a outra, delineia sensualmente a boca, esculpe o nariz e desfaz a orelha.“7
Lucia Teixeira termina seu artigo com o seguinte parágrafo:
Essa mulher pintada por uma mulher está a dizer, eis-me aqui, a mulher que sempre esteve nas fígurativizações das pinturas de todos os tempos, a mulher que quase nunca esteve na assinatura de um quadro. Eis-me aqui e esta não sou eu, mas uma outra, mas todas.
Eis-me aqui, de brincos enormes e roupa vermelha, chamando a atenção para a mulher que sempre sou e que não sou mais, fazendo-me mulher em detalhes de adorno que são apenas isso – adornos – a distrair os olhos do espectador, para concentrá-los na ilusão pictórica que permite ao exagero a qualidade da irrelevância. Eis-me aqui, para transformar a mulher na possibilidade de sujeito produtor – não mais apenas modelo – do efeito estético.8
Localização de Autorretrato (manteau rouge)
Por ser uma obra icônica, manteau rouge inspirou a um perfume da marca Boticário em 2006. Atualmente o quadro faz parte do acervo do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro.

Artigos Relacionados
Operários de Tarsila do Amaral
Referências
- AMARAL, Tarsila do. “Recordações de Paris”, Habitat, n. 6, São Paulo, 1952; Correio Paulistano, São Paulo, 24 jun. 1952, T, p. 130. apud LIM, So Ra. Da Imagem à Palavra: medo e ousadia em Hye Seok Rha, Tarsila do Amaral e Frida Kahlo. Tese de doutoramento. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2005. p. 206 ↩︎
- AMARAL, 5 jul. 1923, T, pp. 407-408 apud LIM, So Ra. Da Imagem à Palavra: medo e ousadia em Hye Seok Rha, Tarsila do Amaral e Frida Kahlo. Tese de doutoramento. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2005. p. 206-207. ↩︎
- MICELI, Sergio. 2003. Nacional estrangeiro. História social e cultural do modernismo artístico em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras. 2000, p. 130 apud SATURNI, Maria Eugênia. Catálogo Raisonné Tarsila do Amaral / Catalogue Raisonné. (org.). São Paulo: Base 7 Projetos Culturais; Pinacoteca do Estado, 2008. 3 vol. Vol 1, p. 128 ↩︎
- GOTLIB, Nádia. Tarsila do Amaral: a modernista. 2 ed. rev. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2000, p. 74. apud SATURNI, Maria Eugênia. Catálogo Raisonné Tarsila do Amaral / Catalogue Raisonné. (org.). São Paulo: Base 7 Projetos Culturais; Pinacoteca do Estado, 2008. 3 vol. Vol 1, p. 96. ↩︎
- LIM, So Ra. Da Imagem à Palavra: medo e ousadia em Hye Seok Rha, Tarsila do Amaral e Frida Kahlo. Tese de doutoramento. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2005. p. 210. ↩︎
- TEIXEIRA, Lucia. Tarsila do Amaral, Musa do Modernismo. Itinerários, Araraquara, 14: 43 – 57, 1999. p. 52. ↩︎
- TEIXEIRA, Lucia. Tarsila do Amaral, Musa do Modernismo. Itinerários, Araraquara, 14: 43 – 57, 1999. p. 53. ↩︎
- TEIXEIRA, Lucia. Tarsila do Amaral, Musa do Modernismo. Itinerários, Araraquara, 14: 43 – 57, 1999. p. 55. ↩︎