Com o título emprestado de uma das composições mais conhecidas de Mozart, Dorothea Tanning posiciona uma série de elementos que seriam típicos de sua produção dos anos 1940. O girassol imenso, as garotas pré-adolescentes com cabelos revoltos em vida própria, as portas e o interior mais ou menos escuro e opressor. Eine Kleine Nachtmusik foi produzido com quando Dorothea Tanning passava uma temporada em Sidona com seu companheiro, o pintor Max Ernst. Segundo ela própria, o compositor alemão era frequentemente um dos assuntos discutidos pelo casal.1 Acredita-se que Tanning tenha usado o título de maneira irônica.

Eine Kleine Nachtmusik, obra representativa do estilo de Dorothea Tanning
O girassol atrai a visão do observador e sua presença é o ponto de choque do quadro tanto por sua dimensão quanto por seu estado. Deitada, a flor jaz agonizante e parece ter sido derrotada a pouco pelas duas garotas (ou talvez garota e boneca). Sua haste está quebrada em diferentes partes e duas de suas pétalas podem ser vistas na escada. Uma terceira se encontra na mão da menina/boneca encostada no batente da porta de número 207.
Essa personagem tem o ar cansado da luta, meio sem fôlego, meio aliviada. Sua companheira encara fixamente o girassol – talvez se certificando de que ele está realmente morto – e seu cabelo voa para o céu como se fosse soprado por uma rajada de vento.
A porta no final do corredor, em conjunto com as personagens e a flor, enfatiza o drama da obra e acrescenta ainda mais questões: foi por ali que o girassol entrou ou era para lá que ele tentou fugir antes de ser neutralizado? Tais são apenas algumas das perguntas que se insinuam em quem observa a pintura. A numeração das portas deixa indicado que tudo se passa dentro de um hotel. Em artigo sobre a obra de Tanning, Gabriela Glavan discorre sobre os ambientes fechados frequentemente compostos por Tanning em seus quadros:
“Casas e interiores não são espaços de proteção, e clausura não implica familiaridade, carinho, comunicação. Esses são, ao contrário, territórios assombrados, cavernas e, inevitavelmente, abismos que, em vez de esconder e proteger, expõe e traem.”2
Os girassóis são figuras recorrentes nos quadros de Dorothea Tanning e aparecem em pinturas como On Time Off Time (1948) e O Espelho (1950), por exemplo. A flor costumava crescer no jardim da casa da família de Tanning, onde ela cresceu, em Illinois. Uma vez em Sedona, Dorothea Tanning plantou girassóis na propriedade na qual viveria com Ernst por anos.

Ao contrário de outros surrealistas como Kay Sage e Leonora Carrington, que se recusavam a explicar suas telas, Dorothea se pronunciou sobre Eine Kleine Nachtmusik nos seguintes termos:
É sobre confronto. Todo mundo acredita em si próprio e em seu drama. Se por um lado não é sempre que eles têm girassóis (a flor mais agressiva) contra os quais brigar, sempre há escadarias, corredores e mesmo teatros privados onde as sufocações e finalidades são representadas, os carpetes vermelho sangue e amarelos cruéis, aquele que ataca, e a vítima deliciada.3
A historiadora da arte Whitney Chadwick, que estudou as artistas surrealistas por décadas, sugere que a obra foi inspirada em Danger on the Stair, tela do artistas francês Pierre Roy de 1927. A exposição de arte surrealista organizada no MoMa em 1936 pode ter sido a ocasião em que Tanning tenha visto o trabalho de Roy pela primeira vez.4 Catriona McAra, por outro lado, relaciona a obra com a personagem de Alice através do Espelho. Mais especificamente com a cena em que a protagonista encontra as flores falantes.5 Segundo a pesquisadora, Louis Carroll foi uma das maiores fontes dos surrealistas que viam em sua Alice um exemplo par excellence da femme enfant tão cobiçada pelos surrealistas.
Não apenas Eine Kleine Nachtmusik mas muitos outros quadros de Dorothea Tanning – como Voltage (1942), The Truth about Comets (1945), Avatar (1947), Palaestra (1949), Interior with Sudden Joy (1951), The Guest Room (1952) – foram e são interpretados exaustivamente em termos de freudianos de expressão de desejos sexuais reprimidos ou, de maneira oposta, de liberdade sexual feminina. Talvez devido ao privilégio dado a tais preocupações por artistas surrealistas, em sua maior parte homens.
Se faz necessário lembrar que tais pontos não foram necessariamente explorados por associadas ao movimento.6 Dorothea Tanning, em sua autobiografia, parece comentar tais interpretações de sua arte ( e aparentemente se referir a Eine Kleine Nachtmusik) de forma mais que denota surpresa, incomodado e irritação:
A pequena procissão de analisadores, arrastando-se em direção ao altar da libido…Por exemplo, algumas pinturas minhas que eu acreditava serem um testemunho da premissa de que estamos travando uma batalha desesperada com forças desconhecidas são, na realidade, fantasias femininas eriçadas com tantos símbolos sexuais.7
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Referências
- Texto sobre o quadro no site do Tate. ↩︎
- GLAVAN, Gabriela. Verbal Dreamscapes. Dorothea Tanning’s Visual Literatura. De Gruyter Open. 14-2016. pp. 110-115. p. 87 . Aqui. ↩︎
- GLAVAN, Gabriela. Verbal Dreamscapes. Dorothea Tanning’s Visual Literatura. De Gruyter Open. 14-2016. pp. 110-115. p. 82 . Aqui. ↩︎
- Texto sobre o quadro no site do Tate. ↩︎
- MCARA, Catriona (2011). Surrealism’s Curiosity: Lewis Carroll and the Femme-Enfant. Papers of Surrealism (9). pp. 1-25. p.9 Aqui. ↩︎
- KARAM, Samantha. Art and Becoming-Animal: Reconceptualizing the Animal Imagery in Dorothea Tanning’s Post-1955 Paintings. Dissertação de Mestrado. Virginia Commonwealth University. 2013. Toda a Introdução. Aqui. ↩︎
- KARAM, Samantha. Art and Becoming-Animal: Reconceptualizing the Animal Imagery in Dorothea Tanning’s Post-1955 Paintings. Dissertação de Mestrado. Virginia Commonwealth University. 2013. p.13. Aqui. ↩︎