Lady Susan é um dos primeiros romances da autora inglesa Jane Austen. Ele foi escrito entre 1793 e 1794, quando Austen tinha entre 18 e 19 anos, mas só seria publicado em 1871 cerca de 50 anos depois de sua morte. Lady Susan narra a história da viúva que dá nome ao livro, uma mulher inescrupulosa, insensível e sedutora em sua empreitada para conquistar o irmão de sua concunhada.
Apesar de ser considerado uma obra imatura de Jane Austen, Lady Susan já traz uma série de elementos que seriam encontrados nos romances futuros da autora, como a ironia e a descrição sagaz das normas sociais. ______________________________________________________________________________________
O contexto da escrita de Lady Susan
Jane Austen ainda era uma adolescente quando escreveu Lady Susan. O conto hoje faz parte da chamada Juvenilla, coletânea de curtas obras que a escritora produziu ainda quando jovem e que não chegaram a ser publicadas enquanto Jane Austen viveu.
Sabe-se da existência de um manuscrito de Lady Susan feito em Bath que data de 1805, ou seja, uma década após a escrita da história. Essa cópia indica – uma vez que possui muito poucas correções – que a história manteve sua importância para a autora para que ela tivesse a disposição de passa-la a limpo e guardá-la. Trata-se de um romance epistolar, ou seja, ele é formado pela troca de cartas entre dois ou mais personagens da trama.
Foi publicado pela primeira vez em 1871 dentro do A memoir of Jane Austen, escrito e organizado por seu sobrinho James Edward Austen-Leigh. James Edward não se furta em dizer que Lady Susan é “uma figura totalmente sinistra“. A crítica posterior continuaria a concordar com o sobrinho do escritora. Marilyn Butler afirma que Lady Susan é “um tubarão com o porte de um cruzeiro em seu círculo social que mais parece um lagoa de peixinhos dourados” enquanto outra critica define o romance como um “livro de anti-conduta“1.
Segundo Jay Levine, Jane Austen não apenas procurou exercitar sua capacidade para a vilania em Lady Susan, como partiu e adaptou um arquétipo literário muito popular no seu próprio tempo: o da viúva feliz. Citando uma série de livros, Levine explica que o personagem da viúva era uma presença constante, mesmo que secundária, em obras não apenas do início do século XIX, mas de todo o século XVIII e mesmo da antiguidade.
Um dos autores preferidos de Jane Austen, Samuel Johnson, em seu Rambler (de 1750), há a personagem da viúva que manda a própria filha para um colégio interno para não ter que competir com a filha na busca por pretendentes.2

Vilania e Hipocrisia: Particularidades do enredo de Lady Susan
Lady Susan é um romance epistolar composto de 41 cartas trocadas entre as diversas personagens da trama. Lady Susan Vernon é a personagem principal que dá nome ao conto. Trata-se da única obra de Jane Austen a priorizar as desventuras de uma vilã que, obviamente, se diferencia em vários aspectos das heroínas que a escritora ainda iria escrever ou que já começara a escrever.

A protagonista é egoísta e sem princípios, até mesmo sádica. Se coloca como a primeira na lista de grandes manipuladores de Jane Austen como Lucy Steel (Razão e Sensibilidade), Frank Churchill (Emma), os irmãos Crawford (Mansfield Park) e outros. Nesse aspecto, Lady Susan também se destaca como a pior representante da categoria de mãe, pais ou pessoas responsáveis pelos jovens nas histórias de Jane Austen. Os romances da escritora são um desfile de figuras maternas e paternas que têm atitudes negligentes, irresponsáveis ou mesmo cruéis com relação àqueles que deveriam cuidar.
Sua insistência em casar a própria filha Frederica – que ela chama de “tormento de sua vida” e “boba” – com um homem estúpido e sem maneiras (porém rico), faz com que a personagem principal supere figuras odiosas como a senhora Bennet (Orgullho e Preconceito) e a senhora Norris (Mansfield Park).
Tais características da personagem principal faz com que Milene de Almeida afirme seu estudo “A identidade feminina interior e exterior de Lady Susan” que Lady Susan é uma obra de experimentação e transição de Jane Austen:
Lady Susan realmente parece ocupar exatamente o período de transformação das estratégias enunciativas, pois há elementos em Lady Susan que Austen nunca havia utilizado e elementos que nunca mais utilizou.3
Outro ponto de diferença é que, ao contrário de obras como Mansfield Park e Orgulho e Preconceito nos quais o leitor acompanha todo o desenrolar das narrativas que leva a um escândalo público, em Lady Susan o escândalo – e a boataria consequente – são elementos já dados, ocorridos antes do início da trama. Assim, o leitor é convidado a acompanhar uma personagem que não sucumbiu à maledicência e desgraça sociais que se seguem às suas atitudes. Ciente da opinião desfavorável de que desfruta socialmente, a protagonista mesmo assim se impõem e continua a conquistar homens casados e solteiros.
Milene de Almeida Silva ainda destaca como o fato de Lady Susan obedecer à risca à etiqueta e às normas sociais da boa educação colabora para que ela seja bem sucedida em suas artimanhas:
Essa heroína espelha em seu exterior o comportamento que as cartilhas ou manuais de conduta mencionados alinhavam como regra ao papel público da mulher, de acordo com o culto da feminilidade. Logo, reiteramos, Lady Susan é um exemplo perfeito de como as máscaras sociais funcionam, quando bem aplicadas.4
Se distanciando de uma análise que destaca a esperteza e sagacidade de Lady Susan, Jay Levine se concentra principalmente no desfecho da personagem e afirma que a obra é uma “galeria de bobos ficcionais: a viúva cheia de maquinações que na verdade não é mais inteligente que Reginal, que é continuamente levado a ver o preto como se fosse branco, ou a senhora Vernon, que em suas tentativas de resgatar o irmão da vampira, consegue meramente acelerar o envolvimento.”5
Personagens de Lady Susan
Lady Susan Vernon – Anti heroína e personagem principal do livro. Ao mesmo tempo que flerta com o jovem Reginald de Courcy e também o faz com o senhor Mainwaring. A personagem também insiste para que sua filha aceite o rico senhor Martin como marido.
Frederica Vernon – Filha de Lady Susan é uma jovem tímida e inocente que vive à mercê das decisões da mãe. Rejeita repetidamente as investidas do senhor Martin pois se nega a se casar com um homem que não ama. Se apaixona por Reginald de Courcy.
Reginald De Courcy – Jovem irmão de Catherine Vernon e solteiro. Inicialmente parece estar consciente da real natureza da senhora Susan mas acaba sendo manipulado pela mesma. Sua paixão pela viúva causa alarme entre seus pais e irmã.
Senhor Vernon – irmão do falecido marido de Lady Susan, Vernon é um rico proprietário de terras e senhor de Churchill. Inocente e bem intencionado, recebe a cunhada em sua propriedade e não dá crédito à sua reputação.
Catherine Vernon – esposa do Senhor Vernon e irmã de Reginald de Courcy. Conhece a personalidade da concunhada e não confia nela. Observa alarmada seu irmão se tornar cada dia mais apaixonado pela vilã.
Senhora De Courcy – mãe de Reginald e Catherine. Mantém uma correspondência constante e frequente com a filha principalmente após tomar conhecimento do interesse de Reginald por Lady Susan o que a deixa aflita.
Senhor De Courcy – Pai de Reginald e Catherine. Quando toma conhecimento dos sentimentos que seu filho nutre por Lady Susan tenta dissuadi-lo de um possível/futuro casamento com a viúva.
Senhor James Martin – riquíssimo senhor e dono de uma grande propriedade porém muito tolo e imaturo. Lady Susan de certa forma o influencia a se apaixonar por sua filha e tenta fazer com que a garota se case com ele.
Alicia Johnson – amiga íntima e confidente de Lady Susan. A única que conhece realmente a essência da viúva sedutora. Costuma ajudar e encorajar a amiga em suas artimanhas apesar da contrariedade de seu marido.
Senhor Johnson – Esposo da senhora Alicia e guardião – espécie de representante jurídico financeiro – da senhora Mainwaring. Conhece o caráter de Lady Susan e ordena que sua esposa não tenha mais contato algum com a amiga.
Senhor Mainwaring– homem belo e sedutor que se casou com a jovem e abastada senhora Mainwaring. Um dos amantes de Lady Susan.
Senhora Mainwaring – Esposa do senhor Mainwaring acolhe Lady Susan e a filha dela Frederica na propriedade do casal. Fica enfurecida de ciúme quando descobre o caso entre seu marido e a viúva. Passa a trama tentando separá-los.
Possíveis fontes de inspiração de Lady Susan
Uma personagem tão única já fez com que estudiosos questionassem as possíveis fontes de inspiração de Jane Austen. A comédia de John Vanbrugh intitulada The Relapse e a peça cômica intitulada Double Dealer de William Congreve são algumas das obras que talvez tenham inspirado a autora inglesa em sua composição de Lady Susan. Beaux Stratagem de George Faquhar também aparece nessa lista. Alguns algum indicam que Lady Susan seja versão austeniana da marquesa de Merteuil do também epistolar romance Ligações Perigosas.
Ha ainda especulações sobre a existência de uma pessoal real, do círculo social de Jane Austen, que teria sido a grande inspiradora da perversa Lady Susan. Uma hipótese aponta para a senhora Craven, avó de Mary Lloyde. Esta última era amiga de Jane Austen e viria a casar com o irmão da escritora, James Austen. Segundo artigo de Judith Stove, a senhora Craven acabou ficando conhecida por sua crueldade com relação aos próprios filhos e filhas. Ela costumava trancafiar as filhas dentro de casa e até negar-lhes comida. As criadas que então alimentavam as garotas já tarde da noite, às escondidas.
Em uma ocasião, a senhora Craven teria se ausentado de casa por uma temporada relativamente longa, deixando as filhas para trás com instruções para que não saíssem de casa sob hipótese alguma. Duas das três, entre elas a mãe de Mary Lloyde, então, aproveitaram a chance e se lançaram em casamentos apressados com homens de classe inferior para conseguirem se ver livre daquele tormento6.

Menos detalhada é a história sobre outra personagem que teria servido de inspiração para Lady Susan. Aparentemente, ela pode ter baseado seu romance no incidente envolvendo dois de seus irmãos e uma senhorita Eliza de Feuillide. Há indícios que de Feuillide tenha encorajado romanticamente os tais dois irmãos mais ou menos na mesma época, criando assim problemas dentro da família Austen.
Eliza de Feuillide tinha laços de parentesco com os Austen. Sua mãe, Philadelphia, era irmã mais velha do pai de Jane Austen, George. Sem dote nem perspectivas, Philadelphia viajou sozinha para a Índia, em 1752, na esperança de encontrar algum homem inglês entre tantos ocupados na empreitada colonial, que a aceitasse, pobre porém inglesa. A tia de Jane Austen se casou com o cirurgião Tysoe Hancock após 6 meses de sua chegada na colônia.
Da união, nasceu uma filha: Elizabeth. O casal retornou à Londres em 1765. A vida na capital, porém, dilapidou o patrimônio da família, de modo que o pai decidiu retornar ao Oriente. Tysoe Hancock morreu no estrangeiro, pouco tempo depois.
Philadelphia então, com a modesta renda que ainda tinha, decidiu se mudar para a Europa, onde o custo de vida na época era consideravelmente menor. Mãe e filha circularam nos círculos da alta sociedade francesa e Eliza se casou com o oficial do exército francês e capitão dos dragões de Maria Antonieta, Jean-François Capot de Feuillide, em 1781. Os dois tiveram um filho e se instalaram em uma propriedade cedida à De Feuillide pelo rei, ao sul da França. Ocasionalmente, Eliza e sua mãe visitavam os parentes na Inglaterra e no ano de 1786 estiveram pela primeira vez em Stevenson, lar da família Austen. 7
O triângulo amoroso entre os irmãos Austen e a jovem terminou no final do ano de 1797: Eliza e Henry Austen se casaram. O casal nunca teve filhos.8
Adaptações
Por ser uma das obras menos conhecidas de Jane Austen, Lady Susan não foi tão adaptada para o cinema e teatro quanto Orgulho e Preconceito ou Emma por exemplo. A mais recente e também a mais acessível das adaptações de Lady Susan é o filme de 2016 dirigido e escrito por Whit Stillman. Apesar do título ter sido tirado de um outro escrito da autora inglesa, Amor e Amizade, o filme traz a história de Lady Susan de maneira relativamente fiel ao livro.
Artigos Relacionados
Bibliografia sobre Lady Susan de Jane Austen
BOTELHO, Maíra da Silva. OLIVEIRA, Thalita Mota de. A ironia em Lady Susan, de Jane Austen. Literausten, Belo Horizonte, V. 7, 84 páginas, 1º semestre. 2020. Disponível aqui.
LE FAYE, Deirdre. Jane Austen: The World of Her Novels. London: Frances Lincoln, 2002.
LEVINE, Jay Arnold. Lady Susan: Jane Austen’s Character of the Merry Widow. Studies in English Literature, 1500-1900, Autumn, 1961, Vol. 1, No. 4, Nineteenth Century (Autumn, 1961), pp. 23-34. p. 23. Disponível no Jstor.
MARTINEZ, Lis Yana de Lima. Lady Susan by Jane Austen: Authorial Voice and Friendship. Revista Versaelte. Curitiba, Vol.2, nº 3, jul-dez. 2014. Disponível aqui.
MULVIHILL, James. “Lady Susan”: Jane Austen’s Machiavellian Moment. Studies in Romanticism. Winter 2011, Vol. 20, n. 4, p. 619-637. Disponível no Jstor.
PUGA, Rogério Miguel. O Falatório (como Controlo patriarcal) face a condutas femininas transgessoras na novela epistolar Lady Susan (c. 1794), de Jane Austen. Literausten, Belo Horizonte, V.1, n. 4, 65 páginas, 2º semestre. 2018. Disponível aqui
RODRÍGUEZ, Carmen María Fernández. Another Mistress of Deceit? Jane Austen’s Lady Susan and Sarah Harriet Burney’s Geraldine Fauconberg. Persuasions On-Line. Volume 36, N. 1 – Winter 2015. Aqui.
SILVA, Milene de Almeida. A identidade feminina interior e exterior de Lady Susan. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2021. Disponível aqui
STOVE, Judith. “The cruel Mrs. Craven: Forced confinement, Family tradition and Lady Susan”. Persuasions. n. 42 . Disponível no academia.edu da autora.
TOTH, Zsófia Anna. Lady Susan as the Great Exemplar of Dysfunctional Parenthood in Jane Austen’s Fiction. HUSSE 2013. Disponível no academia.edu da autora.
YOGI, Yuriko Bezerra Lima. “The Females of the Family are United Against Me”: Lady Susan em Primeiras Impressões. Literausten, Belo Horizonte, V. 5, 84 páginas, 1º semestre. 2019. Aqui.
Artigos da Wikipédia em inglês e francês.
Referencias
- MULVIHILL, James. “Lady Susan”: Jane Austen’s Machiavellian Moment. Studies in Romanticism. Winter 2011, Vol. 20, n. 4, p. 619-637. p. 620. Disponível no Jstor. ↩︎
- LEVINE, Jay Arnold. Lady Susan: Jane Austen’s Character of the Merry Widow. Studies in English Literature, 1500-1900, Autumn, 1961, Vol. 1, No. 4, Nineteenth Century (Autumn, 1961), pp. 23-34. p. 23. ↩︎
- SILVA, Milene de Almeida. A identidade feminina interior e exterior de Lady Susan. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2021. p. 52. ↩︎
- SILVA, Milene de Almeida. A identidade feminina … p. 56. ↩︎
- LEVINE, Jay Arnold. Lady Susan: Jane Austen’s Character of the Merry Widow. Studies in English Literature, 1500-1900, Autumn, 1961, Vol. 1, No. 4, Nineteenth Century (Autumn, 1961), pp. 23-34. p. 33. ↩︎
- STOVE, Judith. “The cruel Mrs. Craven: Forced confinement, Family tradition and Lady Susan”. Persuasions. n. 42. ↩︎
- LE FAYE, Deirdre. Jane Austen: The World of Her Novels. London: Frances Lincoln, 2002. p. 16-18. ↩︎
- LE FAYE, Deirdre. Jane Austen: The World of Her Novels. London: Frances Lincoln, 2002. p. 24 ↩︎