O Reino deste Mundo é um livro escrito por Alejo Carpentier e lançado em 1949. Tratando os diversos eventos, lutas e revoluções pelas quais o Haiti passou ao longo do século XVIII, o livro traz o ponto de vista de um homem comum: o escravizado Ti Noel.
Dessa maneira, Carpentier explora como a visão de mundo os africanos/ afro antilhanos vivendo sob o regime escravista, em especial sua religião e crenças, levaram a revoltas e à luta. O Reino deste Mundo se tornou uma obra clássica e é considerada a precursora do chamado novo romance histórico latino-americano.
O Contexto da escrita de O Reino deste Mundo
Após uma estadia de anos na Europa, Alejo Carpentier retornou à Cuba em fins da década de 1930. Sobre o fim da estadia no velho continente e seu retorno às terras natais, Carpentier declarou: ” […] e ao me aproximar da América sentia que, de algum modo, eu devia produzir a minha obra”.1 Seu reencontro com Louis Jouvet, ator e diretor de teatro que conhecera em Paris, em 1943, e a viagem para o Haiti que empreenderam foram os primeiros passos em direção à escrita de O Reino deste Mundo.
Sabe-se que Carpentier visitou uma série de lugares que depois fariam parte de seu livro, como a casa de Pauline Bonaparte e o palácio de Henri Christophe chamado Sans Souci. Sobre isso, o escritor afirmou: “O que mais precisa um romancista para escrever um livro? Comecei a escrever O Reino deste Mundo.”2
Lizabeth Paravisini-Gebert aponta, em artigo, para as diversas fontes consultadas por Alejo Carpentier durante o seu trabalho de reconstrução histórica do Haiti do século XVIII. Citando o trabalho de Roberto Gonzalez Echevarria, fica demonstrado como o autor cubano lançou mão de obras como Description topographique, physique, civile, politique et historique de la partie française de Isles de Saint Domingues (1797) de Mederic Moreau, especificamente no que concerne a execução de Makandal e a passagem do “Pacto Solene” em Bois Caiman.
Outra obra utilizada por Carpentier é Saint-Domingue: La société et la vie créoles sous l’ancien régime (1629-1789), escrita por Pierre de Vassiere em 1909 e também Vie de Toussaint-Louverture (1889) de Victor Schoelcher.3

Características do Enredo de O Reino deste Mundo
Com o Reino deste Mundo, Alejo Carpentier inaugurou uma nova era dentro do estilo chamado de Ficção Histórica. A história e realidade latino-americanas seriam nesse novo momento o cenário principal da narrativa. Seu método incluiu, como o próprio autor declarou uma ampla pesquisa: “[Reino deste Mundo] foi estabelecido com base numa documentação extremamente rigorosa, que respeita a verdade histórica dos fatos […] e que oculta também, sob sua aparente intemporalidade, um minucioso cotejo de datas e cronologias”4
A história, sendo o principal material constitutivo de O Reino deste Mundo, não é, no entanto, o único. Conforme aponta Víctor Figueroa “todo o romance é um mosaico extraordinário que costura e amálgama uma série de fontes prévias, incluindo memórias, livros históricos, e mesmo o próprio livro de Carpentier de 1946 chamado Música de Cuba.”5
O prólogo de O Reino deste Mundo é, nas palavras de Klaus Bergh um verdadeiro manifesto, no qual o escritor explica o conceito de “real maravilhoso” o qual todo o livro é uma tentativa de captação e exposição. Logo no início de seu texto, Alejo Carpentier destaca como os artistas e escritores europeus recorriam às mais diversas estratégias para captar o assombro de uma realidade (in)comum.
Citando principalmente os surrealistas, com os quais Carpentier havia convivido, o escritor destaca como suas tentativas eram fracas e inúteis, incluindo desde suas obras mais ou menos aleatórias – os objets trouvés sendos os mais famosos o Telefone de Lagosta de Salvador Dali e Minha Babá, de Meret Oppenheim – até os quadros do considerado imaginativamente pobre Yves Tanguy.
Tais iniciativas de se captar e mesmo criar o senso de assombro de uma realidade mais profunda ou superior eram artificiais e ineficazes. Apenas na América Latina é realmente possível experienciar-se o assombro, o milagre, o sobrenatural, o maravilhoso. No Novo Mundo, ao contrário da Europa, existe um elemento, segundo Carpentier: a fé. Em lugares como o Haiti, Cuba e Venezuela, as pessoas realmente acreditam que o incomum acontece e, mais, acontece a todo momento. O Haiti, conforme diz o escritor:
“é uma terra onde milhares de homens ansiosos por liberdade acreditaram nos poderes licantrópicos de Mackandal, a ponto dessa fé coletiva produzir um milagre no dia de sua execução.“6
Como afirma Lacowicz, o termo “maravilhoso” não está relacionado – pelo menos não unicamente – à beleza e deslumbramento, mas à realidade latino americana e refere a “aquilo que rompe com as noções de racionalidade e civilização (na acepção positivista, dotada de um tom colonizador), ou seja, também a crueldade, violência, a deformação dos valores, o exercício tirânico do poder, fatores que integram a noção dos prodígios americanos.”7

Falando sobre o primeiro livro de Alejo Carpentier, Ecue-Yamba-O!, Pedro Barreda-Tomás aponta para as características do romance histórico típicas do cubano, as quais podem ser extendidas para O Reino deste mundo: ” […] a intenção de Carpentier não era a reconstrução ingênua e erudita de fatos, ambientes e personagens. Os acontecimentos históricos são reatualizados com o propósito de criar uma dimensão épico-politica”.8
Essa nova dimensão tem como personagem principal Ti Noel, um homem escravizado. Desse modo, um dos pontos de originalidade do autor é o seu enfoque na vida não nos senhores de terra franceses no Haiti e nem mesmo nos líderes africanos das revoltas, mas na pessoa comum que viveu tais acontecimentos à sua maneira.
Ao longo de todo o livro, o leitor acompanha como os mesmo eventos têm interpretações e consequências completamente diferentes para os brancos, que têm o comando da ilha, e a população escravizada e negra. Tais diferenças, culturais e religiosas, marcam, por exemplo, o entendimento dos dois grupos da execução de Makandal.
Enquanto os brancos, orgulhosos, organizam o evento – a execução é estruturada como um verdadeiro show – de modo a tornar o caso do líder exemplar, os escravizados, quase todos iniciados no culto tradicional de Makandal e crentes em seus poderes metamórficos, não acreditam em sua morte. O líder, para eles, tomando a forma de uma mosca, é capaz de fugir e continuar inspirando seus seguidores. Nesse sentido, Steven Bell afirma:
“os elementos ‘mágicos’ ou fantásticos no texto podem de fato estar relacionados ao tema principal do romance: a oscilação entre duas visões de mundo ou realidade, e a problematização de sua coexistência.”9
Personagens de O Reino deste Mundo de Alejo Carpentier
Ti Noel: protagonista do romance, é um escravizado de Lenormand de Mezy. O Reino deste Mundo segue a vida de Ti Noel o qual testemunhas as inúmeras transformações pelas quais passa o Haiti.
Lenormand de Mezy: dono de uma extensa fazenda e escravaria constituída entre outros por Ti Noel. O leitor acompanha os desdobramentos da revolta de Bouckman em sua propriedade.
François Mackandal: originário da África e respeitado praticante do vodu haitiano, Makandal foi o líder de uma revolta de escravizados. Capturado, ele foi executado em praça pública em 1758.
Henri Christophe: ex-escravizado e que se tornou militar e depois proclamou-se rei em 1820. Seu palácio Sans Souci é suntuoso e construído todo no estilo europeu. Comete suicidio quando uma revolta contra si estoura.
Dutty Bouckman: líder escravizado e também praticante do vodu, Bouckman e seus seguidores deram início ao que se tornou a Revolução Haitiana.
Pauline Bonaparte: irmã mais nova de Napoleão Bonaparte, ela é casada com o general francês Charles Leclerc. Viaja com o marido para o Haiti seguindo-o em missão
Charles Leclerc: esposo de Pauline Bonaparte, Leclerc recebe do cunhado Napoleão a incumbência de pôr fim às revoltas e levantes que ocorriam na ilha.
Crítica de O Reino deste Mundo
Lizbeth Paravisini-Gebert para o capítulo envolvendo Pauline Bonaparte, e sua presença em um ritual da religião africana, como evidencia dos limites d’O Reino deste Mundo. Para a pesquisadora, a caracterização dessa personagem (branca e sensual) nesse contexto a de uma cerimonia celebrada por (ex)escravizados africanos enfraquece o argumento da obra que relaciona toda a espiritualidade africana no Haiti à coesão e sucesso das revoltas dessa população.Para ela:
[a cena com Pauline Bonaparte] inverte e subverte a aliança de Makandal, Boukman, Dessalines e Henri Christophe com os loas que tinha lhes ajudado a virar o jogo do comando colonial, fetichizando os rituais de possessão e comunhão com os deuses e tornando-os uma versão tola de uma dança macabra que provoca o leitor com imagens de uma mulher branca pelada e prostrada em posição miserável em frente a um homem negro salvador e de tanga que sacode um frango sangrento. É uma fantasia de uma alteridade bárbara típica de Magic Island de Seabrook que sabota a intenção de Carpentier de privilegiar a conexão entre história e fé em sua narrativa da Revolução Haitiana.“10
Bibliografia sobre O Reino deste mundo de Alejo Carpentier
ANDERSON, J. Bradford. The Clash of Civilizations and All That Jazz: The Humanism of Alejo Carpentier’s “El reino de este mundo”. Latin American Literary Review, Jan. – Jun., 2007, Vol. 35, No. 69 (Jan. – Jun., 2007), pp. 5-28. Disponível no Jstor.
BARREDA-TOMÁS, Pedro. Alejo Carpentier: Dos Visiones del Negro, Dos Conceptos de la Novela. Hispania, Mar., 1972, Vol. 55, No. 1 (Mar., 1972), pp. 34-44. Disponível no Jstor.
BELL, Steven M. Carpentier’s El reino de este mundo in a New Light: Toward a Theory of the Fantastic. Journal of Spanish Studies: TwentiethCentury , Spring – Fall, 1980, Vol. 8, No. 1/2 (Spring – Fall, 1980), pp. 29-43. Disponível no Jstor.
BENEVENUTO, Silvana. O Reino Deste Mundo – A História do Ponto de Vista dos Oprimidos. Baleia na Rede ISSN: 1808-8473 Revista online do Grupo de Pesquisa e Estudos em Cinema e Literatura. Aqui.
BITTENCOURT, Libertad Borges. FREDRIGO, Fabiana de Souza. Os Lugares Preenchidos Pela Imaginação: A Cena Literária Como Desafio aos Historiadores – Carpentier e o Reino Deste Mundo. História Unisinos 19(2):194-207, Maio/Agosto 2015 © 2015 by Unisinos – doi: 10.4013/htu.2015.192.07. Aqui.
FAGUNDES, Marcelo Gonzales Brasil. Intenções Literárias: Politica e História em Alejo Carpentier. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina. 2008. Aqui.
FIGUEROA, Víctor. The Kingdom of Black Jacobins: C. L. R. James and Alejo Carpentier on the Haitian Revolution. Afro-Hispanic Review, Vol. 25, No. 2 (FALL 2006), pp. 55-71. Disponível no Jstor.
LACOWICZ, Stanis David. El Reino De Este Mundo: Sobre o Realismo Maravilhoso e o Novo Romance Histórico em Alejo Carpentier. GARRAFA. Vol. 16, n. 46, Outubro-Dezembro 2018. “El reino de este mundo…”, p. 196 – 210. ISSN 18092586. Aqui.
MÜLLER-Bergh, Arthur. Corrientes vanguardistas y surrealismo en la obra de Alejo Carpentier. Revista Hispánica Moderna , Oct. – Dec., 1969, Año 35, No. 4 (Oct. – Dec., 1969), pp. 223-340. Disponível no Jstor.
PARAVISINI-GERBERT, Lizabeth. The Haitian Revolution in Interstices and Shadows: A Re-Reading of Alejo Carpentier’s “The Kingdom of This World”. Research in African Literatures, Summer, 2004, Vol. 35, No. 2, Haiti, 1804-2004:Literature, Culture, and Art (Summer, 2004), pp. 114-127. Disponível no Jstor.
ROCHA, Daniel. Sob o Encanto de Mackandal: Utopia, Milenarismo e Revolução em El Reino de Este Mundo de Alejo Carpentier. Religião & Sociedade, ISSN: 1984-0438, Vol: 38, Issue: 3, Page: 132-152. Aqui.
RÜCKEL, Rita de Cássia Germano. Jogos Primaveris (Alejo Carpentier). R.História, São Paulo, n. 123-124, p. 95-115, ago/jut., 1990/1991. Aqui.
UNRUH, Vicky. The performing spectator in Alejo Carpentier’s fictional world. Hispanic Review; Winter 1998; 66, 1. Disponível no Jstor.
VARGAS, F. A. (2018). O mundo e o reino: historicidade e ficcionalização em El reino de este mundo, de Alejo Carpentier. Brazilian Journal of Latin American Studies, 16(31), 189 -202. https://doi.org/10.11606/issn.1676-6288.prolam.2017.139512
Referências
- FAGUNDES, Marcelo Gonzales Brasil. Intenções Literárias: Politica e História em Alejo Carpentier. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina. 2008. p. 90. ↩︎
- FAGUNDES, Marcelo Gonzales Brasil. Intenções Literárias: Politica e História em Alejo Carpentier. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina. 2008. p. 90. ↩︎
- PARAVISINI-GERBERT, Lizabeth. The Haitian Revolution in Interstices and Shadows: A Re-Reading of Alejo Carpentier’s “The Kingdom of This World”. Research in African Literatures, Summer, 2004, Vol. 35, No. 2, Haiti, 1804-2004:Literature, Culture, and Art (Summer, 2004), pp. 114-127. p. 116. ↩︎
- BITTENCOURT, Libertad Borges. FREDRIGO, Fabiana de Souza. Os Lugares Preenchidos Pela Imaginação: A Cena Literária Como Desafio aos Historiadores – Carpentier e o Reino Deste Mundo. História Unisinos 19(2):194-207, Maio/Agosto 2015 © 2015 by Unisinos – doi: 10.4013/htu.2015.192.07. p. 199. ↩︎
- FIGUEROA, Víctor. The Kingdom of Black Jacobins: C. L. R. James and Alejo Carpentier on the Haitian Revolution. Afro-Hispanic Review, Vol. 25, No. 2 (FALL 2006), pp. 55-71. p. 59. ↩︎
- CARPENTIER, Alejo. El Reino deste Mundo. Coleccíon Ideas, Letras y Vida. Cia General de Ediciones, S. A. Mexico. 1973. ↩︎
- LACOWICZ, Stanis David. El Reino De Este Mundo: Sobre o Realismo Maravilhoso e o Novo Romance Histórico em Alejo Carpentier. GARRAFA. Vol. 16, n. 46, Outubro-Dezembro 2018. “El reino de este mundo…”, p. 196 – 210. ISSN 18092586. p. 203. ↩︎
- BARREDA-TOMÁS, Pedro. Alejo Carpentier: Dos Visiones del Negro, Dos Conceptos de la Novela. Hispania, Mar., 1972, Vol. 55, No. 1 (Mar., 1972), pp. 34-44. p.43. ↩︎
- BELL, Steven M. Carpentier’s El reino de este mundo in a New Light: Toward a Theory of the Fantastic. Journal of Spanish Studies: TwentiethCentury , Spring – Fall, 1980, Vol. 8, No. 1/2 (Spring – Fall, 1980), pp. 29-43. p. 41. ↩︎
- PARAVISINI-GERBERT, Lizabeth. The Haitian Revolution in Interstices and Shadows: A Re-Reading of Alejo Carpentier’s “The Kingdom of This World”. Research in African Literatures, Summer, 2004, Vol. 35, No. 2, Haiti, 1804-2004:Literature, Culture, and Art (Summer, 2004), pp. 114-127. p. 126. ↩︎