Autorretrato de Leonora Carrington é uma das pinturas mais famosas de Leonora Carrington, artista inglesa que viveu no México a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Carrington a iniciou em 1937 em Londres e terminou-a no ano seguinte em Paris.
Trazendo fortes referências à infância da pintora, a obra é composta por figuras como o cavalo branco e a hiena que se tornaram recorrentes personagens na produção pictórica e também escrita de Leonora Carrington. Atualmente, Autorretrato de Leonora Carrington (Hospedaria Cavalo Alvorada) faz parte do acervo do MET Museum em Nova Iorque.

Filha de um grande industrial inglês e de sua mãe irlandesa, os planos de estudar arte de Leonora Carrington nunca foram celebrados por seus pais e familiares. Na adolescência, Leonora já tinha sido expulsa de pelo menos dois colégios internos para moças e não nutria qualquer entusiasmo pela vida e expectativas sociais de sua classe. Apesar dos conflitos, no entanto, os Carringtons permitiriam que Leonora desse início a sua educação artística.
Na academia de Améedée Ozenfant em Londres, a jovem artista não apenas teve aulas como fez amigos. Uma de suas colegas, Úrsula, foi responsável por convidar Leonora a um jantar em que ela seria apresentada a um de seus pintores preferidos: Max Ernst. Em 1936, aos 19 anos, a inglesa conheceu o já famoso pintor alemão que se encontrava em Londres devido a uma exposição.
Radicado na França, então com 46 anos, casado pela segunda vez e pai de um adolescente fruto do seu primeiro casamento, Max Ernst era um dos principais membros do grupo surrealista e um célebre pintor nos meios artísticos de Paris. Sua condição financeira, porém, era precária, fato comum na vida de artistas de todas as épocas. Carrington e Ernst decidiram, apesar de todos os impeditivos, por ficar juntos como um casal. O pai da jovem, no entanto, se opôs veemente e numa tentativa de separar os amantes denunciou a exposição de Ernst à policia como indecência e pornografia.1 Os dois fugiram juntos para a França.
De todos os elementos do quadro, o cavalo é um dos que mais chamam a atenção e é o único que se repete duas vezes. No decorrer das muitas décadas de carreira, Leonora Carrington representou cavalos repetidas vezes. Nas palavras da historiadora da arte Whitney Chadwick, o cavalo se tornou “sua imagem mais poderosa e mais pessoal“2. Tendo tido aulas de equitação, a relação com os cavalos é um dos poucos pontos de sua infância na casa paterna que Leonora Carrington se referia com carinho e saudade.
A paixão e identificação de Leonora com cavalos seria uma constante em seu trabalho e apareceu em outras pinturas como Chá Verde (1942) e também em seus contos e peças como Penélope de 1946. Nela, a heroína de mesmo nome se apaixona por seu cavalo de madeira, Tartar, e tem que enfrentar o próprio pai que acredita que a filha já está muito velha para o brinquedo e, por isso, pretende queimá-lo.
Autorretrato de Leonora Carrington e os Cavalos
Em Autorretrato de Leonora Carrington, a artista contrasta o cavalinho de madeira pendurado na parede, reminiscência dos tempos de criança, com o animal livre e revolto que vemos pela janela. Suas roupas lembram o traje de montaria típico e já foi apontado por alguns que o próprio cabelo da figura de Leonora no quadro, marrom e volumoso, remete por sua vez à crina e pelo equinos.
A maior parte das interpretações da obra relacionam os dois cavalos brancos à própria figura de Leonora, de modo que o brinquedo preso à parede representa de certa maneira o passado da artista e o animal que vemos ao ar livre seria sua situação presente e mesmo futura. Conforme afirma Ana Salvi em artigo, Auto Retrato é como um rito de passagem “mediado por animais que representam [..] potência, liberdade…“.3
O outro animal presente no quadro, perto do retrato da pintora, é uma hiena. Com peitos e pelos eriçados, a fera parece encarar o observador da mesma forma que o próprio retrato de Leonora o está fazendo. Sobre ela, Whitney Chadwick afirmou “A hiena, juntando atributos femininos e masculino em um todo enriquecedor, pertence ao mundo fértil da noite e dos sonhos.”4 Nota-se que um pouco atrás do animal há uma fumaça, que indica que ele acabou de aparecer, de se materializar. Seria essa hiena um ser mágico, um semi-deus? Ou teria sido ela mandada para perto de Leonora como uma entidade protetora? Tal pergunta permanece sem resposta, pelo menos no que toca Autorretrato.
Em um dos contos mais famosos de Carrington, por outro lado, a resposta é positiva para as duas perguntas. A hiena de seu A Debutante (1940), uma fada madrinha às avessas, ajuda uma garota a se livrar do próprio baile de formatura ao se passar pela jovem. Um pequeno conto que fez parte da coletânea Antologia do Humor Negro de André Breton, A Debutante reforça a compreensão de Leonora Carrington tinha dos animais em geral: seres próximos dos humanos, seus parceiros de jornada, os quais deveriam ser respeitados e representados em suas complexidades. A partir disso, não surpreende o fato de que Leonora se tornaria uma ativista eco feminista décadas mais tarde, nos anos 70 e 80.5
Autorretrato é, assim, uma celebração da liberdade recém adquirida por Leonora Carrington. Naquele mesmo ano, ela também pintaria A Refeição do Lorde Castiçal, um quadro provocativo que expõe ao observador do que (ou de quem, ou de onde) Leonora conseguira se libertar.
Feito em Paris, o autorretrato foi levado por Leonora Carrington para a pequena cidade de Saint Martin D’ardeche naquele mesmo ano. A pintora e seu companheiro estavam fugindo tanto das intrigas dentro do movimento surrealista quanto da então esposa de Ernst, Marie Berthe. A obra permaneceu na propriedade por anos junto com sua “irmã gêmea”, o Retrato de Max Ernst.
O Autorretrato de Leonora Carrington e o Retrato de Max Ernst testemunharam o que ocorreria com Leonora e Max nos próximos meses : o inicio de fato da Segunda Guerra Mundial, a vinda de Marie Berthe em mais uma tentativa de conversar com seu marido, a decisão de Max de retornar com ela para Paris a fim de por um ponto final na relação, seu retorno a Saint Martin depois de um mês, o aprisionamento do pintor duas vezes, o inicio do colapso nervoso de Leonora e sua consequente fuga para a Espanha.
Os quadros permaneceram na casa da propriedade por mais de um ano entre a partida da artista e a liberação de seu companheiro. As vicissitudes da guerra fizeram com que Max retornasse muitos meses depois até Saint Martin, sem saber da partida de Leonora Carrington. O novo proprietário da casa relatou o acontecido e afirmou que não tinha se livrado de quase nada que a jovem deixara para trás. Determinado a fugir da França invadida, Max tomou as duas telas de Leonora e levou consigo.6 Sua escapada o levou aos Estados Unidos, onde Autorretrato (Hospedaria do Cavalo Alvorada) permanece até hoje.
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Referências
- MOORHEAD, Joanna. Leonora Carrington: Una vida surrealista / Joana Moorhead; trad. Laura Vidal – Madrid: Turner, 2017. p. 54. ↩︎
- CHADWICK, Whitney. Women Artists and the Surrealist Movement (London: Thames and Hudson, 2002). p.78. ↩︎
- SALVI, Ana Carolina Magalhães. Leonora Carrington e o Sonho nas Zonas de Fronteira: Um Olhar Feminista. Revista TEL, Irat, v.4, n. 1, p 155 – 174, Jan/Jun. 2023. Aqui. ↩︎
- CHADWICK, Whitney. Women Artists and the Surrealist Movement (London: Thames and Hudson, 2002). p. 39. ↩︎
- Ver item Movimento Feminista Mexicano em nosso artigo sobre a vida de Lenora Carrington. ↩︎
- MOORHEAD, Joanna. Leonora Carrington: Una vida surrealista / Joana Moorhead; trad. Laura Vidal – Madrid: Turner, 2017. p. 126. ↩︎