O Autorretrato com Cabelo Cortado é um quadro pintado por Frida Kahlo em 1940, e um dos quadro mais conhecidos da artista. A obra recebeu e recebe uma série de interpretações desde sua produção. A mais comum, e não necessariamente única, é a de que Autorretrato com Cabelo Cortado retrata uma desavença entre Frida e seu marido Diego Rivera. Atualmente, o quadro faz parte da coleção do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.
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Assim como é comum a toda a obra da artista, o quadro costuma ser entendido e analisado a luz de acontecimentos da vida amorosa de Frida. Seu marido, o famoso pintor muralista Diego Rivera, teve uma serie de relacionamentos extraconjugais ao longo de seu casamento de quase duas décadas com Frida. A própria pintora, sabe-se, também teve casos tanto com mulheres como com outros homens.
Tal dinâmica não era, porém, livre de conflitos e por muito tempo se defendeu que Autorretrato com o Cabelo Cortado é a ilustração de uma vingança de Frida contra Diego: sabendo do apego que o marido tinha aos seus longos cabelos, a artista teria aparado as madeixas de maneira radical, pois seu esposo mantivera um caso com ninguém menos que a cunhada, irmã mais nova de Frida Kahlo.
O conflito seguido de divórcio, ocorrido entre 1939 e 1940, não teria sido o primeiro, e, anteriormente, Frida já havia ao que parece cortado o próprio cabelo de modo a ferir Diego Rivera.1 A definição do quadro dada por Marie-Françoise Delaneuville-Shideler é representativa de uma leitura biográfico-emocional tanto de Autorretrato com o Cabelo Cortado como de toda a obra de Frida Kahlo: [Autorretrato com Cabelo Cortado] produto estético de seu divorcio de Diego Rivera.2

Em artigo totalmente dedicado ao quadro, Julie Crenn repudia tal interpretação da pintura. Em suas palavras: “o próprio fato de se pensar que ao se representar assim [com cabelos cortados] ela estava se dirigindo a seu companheiro é desvalorizador e redutor com relação a seu status de artista, isso implicaria que ela não tinha consideração ao olhar do espectador“3. Crenn não dispensa totalmente a abordagem biográfica mas recorre a coleção privada de livros de Frida em busca de fontes que possam ter inspirado a artista.
Ali ela encontra por exemplo a admiração que a pintora nutria por George Sand, pseudônimo da autora de romances francesa Amandine Dupin , que cortou seus cabelos após a partida de Alfred de Musset.4 Além de Sand, há também outra autora, Sor Juana Inès de la Cruz, que se auto puniu por sua lentidão na aprendizagem de latim cortando todos os dias varias mechas de cabelo.5

Em sua analise, Crenn não se atém unicamente aos cabelos cortados de Frida, mas a toda a sua figura que nos aparece sugestivamente portando terno e gravata – elementos considerados masculinos por excelência, principalmente no inicio da década de 40 do século XX – e também salto alto e brinco. De modo, a historiadora oferece uma interpretação diferente de Autorretrato com o Cabelo Cortado, uma mais interessada em questões de fluidez de gênero e feminismo.
A reunião de tais opostos em uma mesma e única figura fez com que a estudiosa da obra de Frida Kahlo, Margaret Lindauer, afirmasse que o quadro situa a artista “em uma categoria enigmática entre os estereótipos femininos e masculinos“.6 Crenn aponta que não apenas o traje e o cabelo aproximam a figura de Frida do masculino mas também sua expressão e sua pose. A tesoura segurada, por outro lado, é entendida como elemento ambíguo que reflete a dualidade geral da composição.
Creen lê no objeto associações a tesouras cirúrgicas que servem para cortar o cordão umbilical do recém nascido. Além disso, ela também faz uma leitura freudiana do utensilio ligando-o à castração. O claro posicionamento feito por Frida Kahlo da tesoura na altura de sua genitália é nesse sentido crucial e a tesoura pode encarnar assim “um símbolo fálico”, quando relacionado ao masculino, ou pode ser uma referencia à “mulher naturalmente castrada”.7
Autorretrato com Cabelo Cortado: para além da briga com Diego Rivera
Tal compreensão que envolve a ambuiguidade de gênero pode, segundo Crenn, ser estendida inclusive ao terreno da sexualidade. A pesquisadora destaca um escrito de Frida Kahlo sobre seu companheiro Diego Rivera dentro os vários que ela produziu. Esse, no entanto, se distancia em tom dos muitos que Frida produziu – os quais enalteciam o pintor de maneira idealizada, platônica – e se revela fortemente sensual e, surpreendentemente, feminino:
Ao vê-lo nu, você pensa imediatamente em um jovem sapo macho apoiado nas patas traseiras. Sua pele é de um branco esverdeado idêntico àquele de um animal aquático. […] Seus ombros juvenis, estreitos e redondos, fluem sem ângulos em braços femininos que terminam em mãos maravilhosas, pequenas e de um desenho delicado, sensíveis e sutis como antenas que se comunicam com todo universo.8
Ao feminilizar seu esposo, um homem 20 anos mais que ela própria e grandalhão, Frida extravasa com sua notória bissexualidade – tema tabu e confinado à esfera privada – para dentro de seu casamento heterossexual. Paralela à feminização de seu próprio marido, sua masculinização se torna assim mais compreensível e talvez ocorra a partir de compreensão gênero fluida, andrógina e desconstruível da artista em si.
Tal analise ganha força se lembrarmos que Frida tinha o habito de se vestir com roupas ditas masculinas desde antes de conhecer Diego Rivera. Vê-se isso por exemplo em foto tirada com suas irmãs em 1926. Para a ocasião, a artista repartiu seus cabelos ao meio e os prendeu para trás, de modo a parecer que os tinha curtos.
Há ainda ao menos outro registro de Frida em uma situação parecida. Alguns anos depois, em 1931, ela e o marido visitaram a família do famoso Luther Burbank, morto em 1926, na California. Diego Rivera havia se interessado pela vida e estudos do americano e chegaria inclusive a acrescentar um discreto retrato dele no mural em que estava trabalhando na época.
Na foto da visita aos Burbank vemos uma Frida jovem, alegre e sorridente vestindo calças, camisa e um lenço no pescoço. Seu cabelo, de novo amarrado para trás, completa o look que a androgeniza. Depois da ocasião, a própria pintora, que sempre havia tido interesse em ciências e biologia, também faria um retrato do célebre agrônomo.
Assim, Autorretrato com o Cabelo Cortado em um primeiro olhar pode de fato estar relacionado ao rompimento entre Frida e Diego. O verso escrito no alto da tela – Mira que si te quise, fue por el pelo, ahora que estas pelona, ya no te quiero – trecho de uma musica popular mexicana, fala sobre rejeição e apego (masculino?) ao cabelo longo: Veja, se eu te amei, foi por causa dos cabelos, agora que está careca, não te amo mais. Porém, a partir de uma visão mais atenta, tal interpretação ganha mais elementos – a feminilização de Diego Rivera por Frida – bem como explicações adicionais relacionadas a postura da artista no tocante a sexualidade e gênero.
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Referencias
- CRENN, Julie. “Ahora que Estas Pelona. Frida Kahlo : l’Ambigüité du genre”, Clio, 36 | 2012, 191-201. Aqui. Versão online dividida em parágrafos numerados. Parágrafo 4. ↩︎
- DELANEUVILLE-SHIDELER, Marie-Françoise. La Rhétorique visuelle du thème de l’écorchée dans le autoportraits de Frida Kahlo: outil de thérapie ou d’accusation? RHETOR -Volume I (2004). Aqui. ↩︎
- CRENN, Julie. “Ahora que Estas Pelona. Frida Kahlo : l’Ambigüité du genre”, Clio, 36 | 2012, 191-201. Aqui. Versão online dividida em parágrafos numerados. Parágrafo 3. ↩︎
- CRENN, Julie. “Ahora que Estas Pelona. Frida Kahlo : l’Ambigüité du genre”, Clio, 36 | 2012, 191-201. Aqui. Versão online dividida em parágrafos numerados. Parágrafo 8. ↩︎
- CRENN, Julie. “Ahora que Estas Pelona. Frida Kahlo : l’Ambigüité du genre”, ... Parágrafo 8. ↩︎
- CRENN, Julie. “Ahora que Estas Pelona. Frida Kahlo : l’Ambigüité du genre”, ... Parágrafo 5. ↩︎
- CRENN, Julie. “Ahora que Estas Pelona. Frida Kahlo : l’Ambigüité du genre”, ... Parágrafo 7. ↩︎
- CRENN, Julie. “Ahora que Estas Pelona. Frida Kahlo : l’Ambigüité du genre”, ... Parágrafo 11. ↩︎