Pintado em 1940, o Autorretrato com Colar de Espinhos e Beija-flor é um dos quadros mais famosos de Frida Kahlo. Uma serie de diferentes interpretações já foram feitas sobre a obra, grande parte delas explora duas possibilidades: a relação de Autorretrato com Colar de Espinhos estar ligado à ascendência indígena de Frida Kahlo e o casamento – na verdade, os conflitos conjugais – da pintora com seu esposo Diego Rivera.
Autorretrato com Colar de Espinhos traz uma imagem de Frida de frente, encarando o observador com um postura ereta e olhar serio e sereno. Ao fundo, uma exuberância de folhas enormes em diferentes tons de verde que chega até o amarelo.
De lado vemos, um pequeno macaco está entretido com o que parece ser um das parte do colar de espinhos. Do outro, um animal que os críticos frequentemente identificam como sendo um gato/ felino tem o pelo no mesmo tom daquele do macaco e do cabelo do retrato de Frida. Sua pose é ativa e seu olhar é atento.
Em conjunto, tais elementos, nos levam a questão: qual é o significado do quadro? Abaixo você pode conferir algumas das interpretações que a obra já recebeu.

Whitney Chadwick, historiadora da arte e pesquisadora, tratou do o Autorretrato com Colar de Espinhos em seu hoje referencial Women and the Surrealist Moviment. Seu entendimento da obra seria mais ou menos reproduzido nos anos seguintes ao lançamento de seu livro e ecoam frequentes interpretações da obra de Frida Kahlo como um todo e de pinturas especificas.
Nas palavras dela: “essa imagem de Kahlo, em um momento de profunda dor pessoal, lê-se como uma imagem sobre a vida a ponto de ser sufocada e sangrada até a secura“.1 Na mesma direção, Sabina Stent, em sua tese sobre mulheres surrealistas, vê na presença do pássaro e do gato, lado a lado, uma projeção do relacionamento predatório de Rivera e Frida.2
Autorretrato com Colar de Espinhos e o México Indígena
Fortunata Calabro em artigo sobre Frida e a identidade tradicional mexicana reforça essa interpretação biográfica emotiva do quadro apesar de apontar para um contexto cultural em que a pintora estava inserida:
“O Beija-flor tem múltiplos significados. Segundo o folclore mexicano, o pássaro poderia ser usado como amuleto para trazer sorte no amor. O retrato foi pintado apenas alguns meses após o divórcio de Frida e Diego. Alguns interpretaram que a presença do Beija-flor possa ser uma tentativa de reconquistar o parceiro perdido ou talvez a esperança de um novo amor futuro”.3
Não se trata exatamente de corrigir tal interpretação pois sabe-se que a vida de Frida Kahlo esteve permeada, desde seu grave acidente aos 18 anos e mesmo desde a infância quando contraiu poliomielite, de profundas dores tanto físicas quanto psicológicas. Seu casamento com o pintor Diego Rivera foi fonte de inspiração e encorajamento artísticos e também de um grande sofrimento emocional.
De modo que entendimentos da obra de Frida a partir de tais eventos não são necessariamente falsos, mas são limitados e uma ampliação da compreensão de seu trabalho a partir do contexto de valorização da cultura mexicana e passado indígenas no seu tempo podem nos ajudar a dar outros significados para sua obra no geral e o presente quadro em especifico.
No mesmo artigo, Calabro aponta para outros significados que um dos elementos centrais do quadro, o beija-flor, pode ter: segundo a tradição nativa, o beija-flor encarna ideias de coragem, magica e vidência além de estar relacionado ao deus da guerra Huitzilopochtli e também ao deus da chuva Tlaloc. Tais pássaros simbolizavam inclusive a reencarnação de guerreiros mortos.4 5
Huitzilopochtli não era apenas o deus da guerra para os antigos astecas, mas sua entidade patrona, responsável pela imigração inicial que os levou até a área em que se estabeleceram, na ilha do lago Texcoco atual Vale do México, e a partir da qual se expandiram.6 Huitzilopochtli também presidia a atividade guerreira asteca, por meio da qual a elite combatente submetia outros povos e cidades ao pagamento de tributos e proporcionava a captura de vítimas sacrificiais.

Entre os principais sacrifícios estava àquele dedicado ao sol, cujo movimento de ascensão diário os astecas esperavam assegurar por meio do oferecimento dos corações dos seus prisioneiros de guerra. Acredita-se que tais sacrifícios tornavam possível a Huitzilopochtli movimentar o sol pelas horas da manhã até o ápice do meio dia.
Descendente de indígenas por parte de mãe e estudiosa da cultura nativa (além de casada com um dos maiores colecionadores de artefatos do antigo México) Frida Kahlo sabia da importância do beija flor para os antigos astecas e quando de sua produção de Autorretrato com Colar de Espinhos e Beija Flor já havia passado cerca de uma década imprimindo ideias e objetos da cultura indígena em seus quadros. A titulo de exemplo podemos citar o Retrato de Luther Burbank (1931) e principalmente Autorretrato na Fronteira do México com os Estados Unidos (1932).

Essencial para o sistema de crença asteca, Huitzilopochtli significa literalmente “beija flor canhoto” e ao deus é creditado as características mais impressionantes da pequena ave. Por seu tamanho diminuto, o beija flor talvez não pareça o arquétipo mais direto de uma entidade fundadora e guerreira como Huitzilopochitli.
Em artigo elucidativo, Iris Monteiro elenca algumas das capacidades do beija flor que teriam ditado sua identificação ao deus pelos antigos astecas: sua obvia agilidade, que o torna capaz de voar para trás e para os lados em busca de flores em ângulos diversos, sua rapidez impressionante, que o faz a ave mais rápida do mundo (ao menos em termos de proporcionais ao próprio corpo), atingindo velocidades superiores a aviões militares, seu metabolismo que varia de estados de atividade incríveis (o coração de um beija flor chega a bater 1200 vezes por minuto) até uma pseudo-hibernação nos meses de inverno.7
Em Autorretrato com Colar de Espinhos, Frida Kahlo posiciona o beija flor no centro do quadro, com as asas estendidas, em um destaque daquilo que ela sabia significar mais do que um simples pássaro.

O colar em torno do retrato de Frida, de onde pende o beija flor, sem duvida pode transmitir em algum nível a sensação de dor e sofrimento. Feito de galhos cobertos por espinhos curtos e pontiagudos, ele está preso rente ao pescoço da figura, as pontas dos espinhos lhe penetram a pele que sangra discretamente. A expressão e o olhar do retrato de Frida, no entanto, são calmos; muito diferentes daqueles de outros quadros em que ela aparece chorando como Coluna Quebrada ou ensanguentada como Unos Cuatons Piquetitos.
Os sacrifícios rituais praticados pelos astecas são amplamente conhecidos. Analisados em livros e dramatizados em documentários, dificilmente alguém entraria em contato com algum tipo de mídia que abordasse esse povo nativo sem encarar algum trecho sobre esse tema. Menos difundida, porém, era a pratica asteca do auto sacrifício, generalizada entre a população.
Sacerdotes, homens, mulheres e mesmo crianças deveriam uma vez ao ano oferecer um pouco do próprio sangue em libação. Com o uso de espinhos de agave ou do ferrão de arraias, astecas de todas as classes e profissões faziam pequenos furos na pele do braço, ou dos dedos, dos lóbulos da orelham, na língua ou até nos genitais de modo a cumprir com o ritual.
Tal fato, do qual Frida tinha total consciência, abre uma nova interpretação para os espinhos e o sangue presentes em sua figura no quadro que, como afirmamos, traz a expressão serena e digna. Dina Comisarenco, em artigo sobre as referencias nativas no trabalho de Frida e de seu marido, nos lembra não apenas do auto flagelação ritual ancestral mas que a própria deusa Coatlicue é frequentemente representada com o pescoço sangrando. Coatlicue, segundo o mito, é a divindade mãe de Huitzlipochtli.8
Encarnação da mãe indígena e portadora do principal atributo do filho, a Frida de Autorretrato com Colar de Espinhos mobiliza os mitos astecas fundadores em torno de sua prática mais condenada tanto pelo Catolicismo quanto pela civilização ocidental: o sacrifício de sangue. A pintora presentifica ao publico mexicano de seu tempo – o único com exceção de acadêmicos e estudiosos das civilizações antigas capaz de compreender as implicações de elementos como o beija flor e os espinhos – as premissas religiosas de seus ancestrais cuja capital Tenochtitlan estima-se ter sido o lar de mais de 200 mil pessoas no século XVI.
Se tivermos em mente que a obra é na verdade um autorretrato, as intenções inovadoras de Frida ficam ainda mais aparentes: além de se apropriar do projeto pós revolucionário de revalorização das culturas e povos tradicionais a partir de referencias mitológicas e práticas sacrificiais, ela se posiciona no centro de tal empreitada enquanto mulher bissexual, racialmente miscigenada e portado de deficiência. Seu Autorretrato com Colar de Espinhos condensa assim aspectos marginais da realidade mexicana de seu tempo.
Por fim, os animais do quadro compor o ambiente em que o retrato de Frida está inserido. As folhas , os insetos, o gato preto e o macaco formam o cenário em que a figura foi posta, como uma moldura. O gato e o macaco, colocados atrás da representação de Frida, atuam como companheiros da pintora. Sabe-se que Frida e seu marido Diego Rivera tinham muitos animais de estimação, em sua maior parte macacos e cachorros, e que esses animais estão presentes em varias das pinturas de Kahlo.
Fortunata Calabro afirma que o macaco de Autorretrato com Colar de Espinhos é Caimito de Guayabal, o mesmo que aparece em uma foto da artista feita por Fritz Henle em 1943.9 Personagens de seus quadros e frequentemente retratados no colo de quadro, Frida demonstra que seus animais são membros de sua família e que sua ligação ao mundo natural – animal e vegetal – está mais próxima àquela dos indígenas nativos do que do Ocidente Europeu.
Artigos Relacionados
Bibliografia sobre o Autorretrato com Colar de Espinhos de Frida Kahlo
CALABRO, Fortunata. Frida Kahlo and Mexican Traditional Identity. Visual Past: Journal for the Study of Past Visual Cultures. 2016. pp.92-107. p.101. Disponível no Academia.edu
CHADWICK, Whitney. Women Artists and the Surrealist Movement (London: Thames and Hudson, 2002).
COMISARENCO, Dina. Frida Kahlo, Diego Rivera, and Tlazolteotl. Woman’s Art Journal, Spring – Summer, 1996, Vol. 17, No. 1 (Spring – Summer, 1996), pp. 14-21. Disponível no Jstor.
ELZEY, Wayne. A Hill on a Land Surrounded by Water: An Aztec Story of Origin and Destiny. History of Religions, Nov., 1991, Vol. 31, No. 2 (Nov., 1991), pp. 105-149. Disponível no Jstor.
LEÓN, Ann De. Coatlicue or How to Write the Dismembered Body. MLN, March 2010, Vol. 125, N. 2, Hispanic Issue, pp. 259-286. p. 280. Disponível no Jstor.
MONTERO, Iris. The Disguise of the Hummingbird: On the Natural History of Huitzilopochtli in the Florentine Codex. Ethnohistory (2020) 67 (3): 429–453. Aqui
STENT, Sabina Daniela. Women Surrealists: Sexuality, Fetish, Femininity and Female Surrealism. Tese de Doutoramento. Universidade de Birmingham. 2011. Aqui.
Referencias
- CHADWICK, Whitney. Women Artists and the Surrealist Movement (London: Thames and Hudson, 2002). p. 87. ↩︎
- STENT, Sabina Daniela. Women Surrealists: Sexuality, Fetish, Femininity and Female Surrealism. Tese de Doutoramento. Universidade de Birmingham. 2011. Aqui. p. 191 ↩︎
- CALABRO, Fortunata. Frida Kahlo and Mexican Traditional Identity. Visual Past: Journal for the Study of Past Visual Cultures. 2016. pp.92-107. p.101. Disponível no Academia.edu ↩︎
- CALABRO, Fortunata. Frida Kahlo and Mexican Traditional Identity. Visual Past: Journal for the Study of Past Visual Cultures. 2016. pp.92-107. p.101. ↩︎
- LEÓN, Ann De. Coatlicue or How to Write the Dismembered Body. MLN, March 2010, Vol. 125, N. 2, Hispanic Issue, pp. 259-286. p. 280. Disponível no Jstor. ↩︎
- ELZEY, Wayne. A Hill on a Land Surrounded by Water: An Aztec Story of Origin and Destiny. History of Religions, Nov., 1991, Vol. 31, No. 2 (Nov., 1991), pp. 105-149. Disponível no Jstor. ↩︎
- MONTERO, Iris. The Disguise of the Hummingbird: On the Natural History of Huitzilopochtli in the Florentine Codex. Ethnohistory (2020) 67 (3): 429–453. Aqui p. 439. ↩︎
- COMISARENCO, Dina. Frida Kahlo, Diego Rivera, and Tlazolteotl. Woman’s Art Journal, Spring – Summer, 1996, Vol. 17, No. 1 (Spring – Summer, 1996), pp. 14-21. Disponível no Jstor. p.20 ↩︎
- CALABRO, Fortunata. Frida Kahlo and Mexican Traditional Identity. Visual Past: Journal for the Study of Past Visual Cultures. 2016. pp.92-107. p.101. ↩︎