Autorretrato de Victor Brauner foi pintado em 1931 e ficou conhecido como Autorretrato com o Olho Enucleado. A obra é famosa por ser considerada premonitória. O próprio autor e seus colegas surrealistas a viram como um presságio do acidente, cerca de 7 anos depois de sua execução, no qual Brauner perderia um dos olhos.
Autorretrato de Victor Brauner: o incidente
Pouquíssimo se sabe sobre os acontecimentos que se desenrolaram na noite do dia 27 para o dia 28 de agosto de 1938 e que mudaram a vida do artista Victor Brauner para sempre. A história resumidamente trata de que Brauner e mais dois amigos, os também pintores Esteban Francés e Oscar Dominguez, se reuniram no apartamento para uma noite de bebedeira e, devido a uma briga como a que ocorre milhares entre jovens bêbados, Victor Brauner acabou perdendo o olho esquerdo.

O que pouco se conta é sobre a presença de uma outra pessoa nessa ocasião, a artista Remedios Varo, e o real motivo da luta entre os companheiros. Mais bem conhecido ainda, algo que espantou a todos daquele círculo de artistas amigos e colegas vivendo na Paris do fim dos anos 30, foi o fato de que Victor Brauner havia pintado a si próprio com um dos olhos machucado (?) ou ferido (?) em seu hoje famoso Autorretrato com o Olho Anucleado (1931) quase uma década antes do incidente com os artistas espanhóis. O próprio Brauner conta o incidente e como o relacionou com suas obras anteriores:
“Então aconteceu assim: a noite [de] 28 de agosto de 1938 perto da meia-noite e meia em um acidente de todo maneira insignificante e no qual eu nem fui o protagonista, depois de um terrível choque na cabeça, meu olho esquerdo me foi arrancado, com uma rapidez impossível de explicar mesmo de reconstituir os fatos.
Como eu nunca havia dado, naturalmente, antes desse evento qualquer importância, e deixava minha inspiração inconsciente se desenvolver livremente, eu me dei somente depois da quantidade enorme de documentos relacionados à minha ferida capital, que me transformaria em um ciclope pelo resto da vida, e também de eventos que correlatos que se multiplicavam ao meu redor.”1

Consequências
Após a fatalidade, Pierre Mabille, médico e membro do grupo surrealista, cuidou algumas vezes do ferimento de seu colega. Para além da perda do olho, nada sabemos sobre as condições de saúde de Brauner após o ocorrido. Se Pierre Mabille, como profissional da medicina, chegou ou não a temer pela vida do amigo, ele não deixou registrado. O que se sabe é que o doutor, algum tempo depois, olhava para o episódio e suas consequências na vida Brauner com assombro mas também admiração. Em suas palavras:
“o homem que eu conhecia antes do acidente era apagado, tímido, pessimista, sem ânimo depois de sua última estada na Romênia, ele é hoje livre, afirma com clareza e autoridade suas ideias, ele trabalha com um vigor novo e conquista com mais frequência seus objetivos.”2
Um dos principais artistas surrealistas, Victor Brauner escreveu sobre o incidente na revista VVV organizada pelo grupo vanguardista. As consequências da perda do olho, segundo Brauner, foram profundas, e, de maneira inesperada, afetaram sua arte. Na edição de 1943, ele nos dá conta, em um relato que ficou conhecido como O Caso Brauner:
“Eu vou contar a terrível e milagrosa história de quando eu perdi meu olho esquerdo. Essa perda original e dramática que foi o evento mais perturbador da minha vida havia sido pintado por mim anos antes de me acontecer, e não conhecemos nenhum exemplo análogo na história (Minha pintura foi violenta comigo e eu agora porto sua marca inapagável no meu rosto.”3
Em seu relato, o próprio artista afirma que a leitura de sua obra de maneira “profética” aconteceu apenas depois do acidente. O ceticismo que tal admissão poderia dar origem é balanceado com o fato de que Brauner citar uma “quantidade enorme de documentos” que serviriam de apoio à “profecia”.
Em seu trabalho “Losing Sight to Gain Vision: The Eye in European Surrealist Painting” Christa Nemnom cita a continuação da narrativa de Victor Brauner – “Durante anos, em todos os meus quadros havia isso e olhos, modificados, [deformados] (…), durante todo um período em todos os meus quadros esse ataque aos olhos predominante, tinha se tornado uma obsessão.”4
Nemnom cita, além de Autorretrato com o Olho Enucleado, outras obras como Paisagem Mediterrânica (Paysage Méditerranéen, 1932), Ligeiramente quente ou Adrianópolis (Légèrement chaude or Adrianopole, 1937) bem como alguns desenhos variados “todos os quais se desenvolvem ao redor de retratações macabras de olhos faltantes ou mutilados”5

Obras proféticas ou não, vimos que o incidente foi considerado pelos membros do grupo surrealista e pelo próprio Victor Brauner um evento fundamental em sua vida e sua carreira. Pelo menos em mais uma obra Brauner retrataria uma figura com os olhos machucados: em seu retrato de Adolf Hitler, o qual pode ser chamado de quadro-voodoo.6
Conforme detalhes biográficos de Victor dão conta, o pintor era visto como um médium já na infância. E seu incidente reforçou tal crença (leia nosso artigo sobre a vida de Victor Brauner para saber mais). No entanto, são poucos os materiais que trazem mais detalhes do incidente e seus incidentes. A maior exceção é o livro de Janet Kaplan.7
Nos estudos mais recentes e disponíveis online sobre Oscar Dominguez, por exemplo, não há menção ao ocorrido. Em sua tese sobre Domínguez – Óscar Domínguez y El Libro: la imagem poética surrealista a través de sua obra – Isidoro Hernández Gutiérrez recorda apenas as palavras de André Thirion, escritor surrealista e amigo do pintor, de que na oficina de Oscar “se bebia muito e as piadas eram brutais”.8
Em sua biografia sobre a vida e obra da pintora Remedios Varo, Kaplan revela que além de Domínguez, Francês e Brauner, Varo também estava presente. A briga entre os pintores teria ocorrido depois de Dominguez ter questionado, de maneira ofensiva, o fato de Remédios, casada oficialmente com Gerardo Lizarraga, estar se relacionando com Francés. Os dois espanhóis então se atracaram, e Victor Brauner perdeu um olho.
O Desenlace
O início da Segunda Guerra Mundial mudaria a história do grupo surrealista e todos os seus membros. A maior parte deles foi obrigada a procurar asilo político em países como os Estados Unidos e o México. Em 1940, muitos artistas ligados ao surrealismo se encontravam em Marselha, na chamada Vila Bel-Air, aguardando documentos e o embarque em algum navio. Nessa época, Remedios Varo e Victor Brauner se envolveram. Do romance dos dois, Remedios guardou um quadro de Victor, e uma carta.
Num trecho dela, o romeno escreve: “Minha muito querida Remédios…. Seu andar é como um vento sutil e como pássaros ou borboletas alto no céu… seu cabelo são raízes de estrelas invisíveis… Seu cabelo é líquido ou mais como uma chama líquida que lambe o ar ao redor dos objetos que eu gostaria de ser?… A cor do odor da sua pele é perfumada por um sabor Oriental distante… Seu corpo em movimento tem o som do leve vento que eles chamam de Zéfiro ou a leveza de uma cascata cheia de trutas…“.9
A pintora, seu outro companheiro da época, Benjamin Péret e o amigo Esteban Francés se mudaram para o México. Apesar das poucas informações sobre Francês, aparentemente sua boa relação com Remedios Varo permaneceu. A pintora fez um esboço do retrato do amigo.
Mesmo com Óscar Domínguez, a artista manteve contato. Uma vez no México, ela recebeu uma carta do colega compatriota:
“Querida Remedios: a leoa de Madri, a lembrança do futuro, o cinco que é três, e, sobretudo, o jacaré do amor que canta no silêncio e que se purifica de pó e palha, como um cavalo novo. Viva minha amiga Remedios / Viva o violão de Remedios / Viva a buceta de Remedios/ Viva o dia abençoado que eu tenha o grande prazer de te ver e de estar com você, minha amiga de sempre, minha roda de fogo de 4 tempos.“10
Artigos relacionados
Bibliografia
CARABAS, Irina. Representing bodies: Victor Brauner’s hybrids, fragments and Mechanisms. Centre-Periphery – The avant-guarde and the other. N.21 2007, p. 231. Aqui
DARIE, Camelia. Victor Brauner and the Surrealist Interest in the Occult. The University of Manchester. Thesis of Philosophy in the Faculty of Humanities. 2012. Disponível aqui.
GUTIÉRREZ, Isidro Hernández. Óscar Domínguez y El Libro: la imagem poética surrealista a través de su obra. Tesis Doctoral. Universidad de la Laguna Departamento de Filología Española. p. 292. Aqui
KAPLAN, Janet. Unexpected Journeys: the art and life of Remedios Varo. Abbeville Press. New York. 1994.
NEMNOM, Christa. Losing Sight to Gain Vision: The Eye in European Surrealist Painting. Concordia University Montreal, Quebec, Canada. 2021. Aqui
SEGURA PANTOJA, Karla Angelica. Le surréalisme déplacé Inventaire, établissement et étude des œuvres des surréalistes exilés au Mexique Littérature française.Thèse de doctorat Université de Cergy-Pontoise / Paris Seine. 2018. Aqui.
Referências
- DARIE, Camelia. Victor Brauner and the Surrealist Interest in the Occult. The University of Manchester. Thesis of Philosophy in the Faculty of Humanities. 2012. p. 70. ↩︎
- CARABAS, Irina. Representing bodies: Victor Brauner’s hybrids, fragments and Mechanisms. Centre-Periphery – The avant-guarde and the other. N.21 2007, p. 231. ↩︎
- DARIE, Camelia. Victor Brauner and the Surrealist Interest in the Occult. The University of Manchester. Thesis of Philosophy in the Faculty of Humanities. 2012. Disponível aqui. p. 70. ↩︎
- NEMNOM, Christa. Losing Sight to Gain Vision: The Eye in European Surrealist Painting. Concordia University Montreal, Quebec, Canada. 2021. p. 32. ↩︎
- NEMNOM, Christa. Losing Sight to Gain Vision: The Eye in European Surrealist Painting. Concordia University Montreal, Quebec, Canada. 2021. p. 32. ↩︎
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- KAPLAN, Janet. Unexpected Journeys: the art and life of Remedios Varo. Abbeville Press. New York. 1994. ↩︎
- GUTIÉRREZ, Isidro Hernández. Óscar Domínguez y El Libro: la imagem poética surrealista a través de su obra. Tesis Doctoral. Universidad de la Laguna Departamento de Filología Española. p. 292. ↩︎
- KAPLAN, Janet. Unexpected Journeys: the art and life of Remedios Varo. Abbeville Press. New York. 1994. p. 67. ↩︎
- SEGURA PANTOJA, Karla Angelica. Le surréalisme déplacé Inventaire, établissement et étude des œuvres des surréalistes exilés au Mexique Littérature française.Thèse de doctorat Université de Cergy-Pontoise / Paris Seine. 2018. p. 243. ↩︎