Cranford de Elizabeth Gaskell

Cranford é um romance de Elizabeth Gaskell escrito e publicado de forma seriada entre 1850 e 1853. Ele narra a história de um grupo de senhoras da cidade fictícia de Cranford. As várias histórias contadas pelos diferentes personagens da trama são envolventes e lidam com temas como dramas familiares, amores frustrados, a vida fora da Inglaterra, entre outros. Bem recebido desde o início, o conto virou livro poucos anos após sua publicação no Household Words e ajudou a sedimentar a fama de Gaskell que ainda produziria diversos contos e romances. 

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A escrita de Cranford

A história da publicação de Cranford começa com algumas publicações no Household Words, de Charles Dickens, em 1850. O conto foi sendo publicado em capítulos irregularmente entre 1851 e 1853. Sabe-se que a autora recebeu um total de 76 libras pela história. Elizabeth Gaskell se inspirou em larga medida na própria experiência de infância e adolescência, sendo criada pela tia viúva abastada na pequena Knutsford. Além disso, a própria escritora, assim como as senhoritas Jenkyns, teve um irmão empregado na marinha inglesa.

Seu nome era John Stevenson e ele inclusive presenteou a autora com um tecido fino originário da Índia, um luxo pouco acessível na época, e que foi reproduzido no romance. De maneira mais ou menos parecida com a situação do personagem Peter Jenkyns, o irmão de Gaskell viajou algumas vezes para o oriente, no entanto, tragicamente, em determinado momento, nunca mais se soube de seu paradeiro.

Uma vez iniciado, Cranford foi publicado com certa frequência em 1851. Houve uma grande pausa até algum momento de 1852, durante a qual Elizabeth Gaskell se dedicou a terminar seu romance Ruth. Cranford foi precedido por outro conto de Gaskell, Mr. Harrison’s Confessions, no qual a autora já explorava a vida e o cotidiano da pequena nobreza interiorana. Atualmente, os dois costumam aparecer juntos em edições de narrativas curtas de Gaskell ao lado de Prima Phillis, Lady Ludlow e Louis, A Bruxa, e outros.

Características do enredo de Cranford

Terence Wright em seu livro sobre a obra de Elizabeth Gaskell resume bem o enredo de Cranford: “É repleto de dor, perda e esperança não realizada, mas é talvez seu livro mais completamente cômico”.1John Chapple destaca o tom de ironia e comédia da obra, que contrasta fortemente com o romance que o antecedeu, Mary Barton. Ainda segundo o crítico, tais pontos não impedem o livro de desenvolver uma profundidade de sentimento ao lidar com assuntos como perdas financeiras, morte e tradição.

Um dos grandes temas de Cranford – além dos explícitos como classe, gênero, etiqueta e mesmo a falta de recursos – é o da mudança. Ou melhor, da inexorabilidade da mudança, seja ela social, tecnológica ou financeira. Desde a linha de trem que está sendo construída logo no início do romance até a brusca perda de condições financeiras sofridas pela senhorita Matty, o que vemos em Cranford são personagens tentando lidar com o fim de uma era que em outras partes da Inglaterra – e do mundo – já é passado. 

Profundo, tocante e por vezes hilário, Cranford também se destaca por sua quase completa negação do romance típico do século XIX no qual necessariamente testemunhamos ao menos uma história de amor. Gaskell começa sua obra de maneira cômica e inesperada: 

Em primeiro lugar, Cranford está em posse de amazonas, todos aqueles que moram em casas cujo aluguel está acima de um certo valor, são mulheres. Se um casal vem se estabelecer na cidade, de alguma maneira o cavalheiro desaparece; ou ele com razão morre de pavor por ser o único homem nos jantares em Cranford, ou ele é recrutado para o seu regimento, seu navio ou envolvido em seus negócio a semana toda na grande cidade comercial vizinha de Drumble, distante apenas 20 milhas pela estrada de ferro. Resumindo, o que quer que aconteça com os cavalheiros, eles não estão em Cranford. O que eles poderiam fazer se estivessem lá?

Nas palavras de Armstrong, a cidade de Cranford é “como um planeta estranhamente tóxico, […] que aparenta ser literalmente incapaz de sustentar a vida do homem (de classe média)“.2 Com a quase que completa ausência masculina, a já conhecida fórmula de paixão e tribulações a serem superadas por um casal até o “felizes para sempre” fica comprometida – mas não completamente ausente – de Cranford. O que então o romance tem a oferecer? O que o tornou tão apreciado em sua época e mesmo nos dias atuais?

A protagonista do enredo, a senhorita Matty Jenkyns, é uma das atrações. Mathilda Jenkyns, é cômica e quase patética – com sua vulnerabilidade, seus medos e impotência. Ela também é, no entanto, moralmente consciente, verdadeira e generosa. Nas palavras de Wright: “Ela não consegue entender nada que lhe é explicado, como muitos acabam descobrindo, mas ela sabe com uma fina diferenciação a verdade de dilemas humanos realmente importantes”.3 Após perder de repente sua única fonte de renda, a senhorita Matty passa a contar, sem saber, com a ajuda de suas amigas e vizinhas para se sustentar, o que demonstra não só a empatia das personagens como o cuidado para não lhe ferirem o orgulho.

De certa forma, a resolução da situação da senhorita Matty é um desenvolvimento de atitudes de ajuda comunitária presentes desde o início da narrativa, envolvendo a família Brown e a família “Brunoni”. Assim, se lembrarmos que as “solteironas” de Cranford já haviam se unido em auxílio de recém chegados e mesmo forasteiros, não é de se surpreender que o façam por uma velha amiga.

Dignas, respeitosas e ferozes guardiãs da etiqueta e discrição, as amazonas de Cranford conciliam o dever de ajuda ao próximo com a humildade e simplicidade de faze-lo sem alarde, sem vangloria. É importante notar que tais personagens, porém, não são idealizações de perfeição feminina, feitas de açúcar: “Essas senhoras não são anjos. Elas são mesquinhas, fofoqueiras, intolerantes, ignorantes e obcecadas com casta“.4

Complexas e humanas, as personagens de Cranford dão vida e cor a uma Inglaterra rural em franco desaparecimento ao mesmo tempo em que a preservam e assim fazem do romance “um tesouro da cor e detalhes locais”.5A riqueza de detalhes da narração faz com que ela seja tida por alguns quase como uma análise etnográfica genuína, em vez de uma obra de ficção.6

Personagens de Cranford

Mary Smith – narradora do livro e visitante em Cranford. Acompanhamos todos os desdobramentos da narrativa sob seu ponto de vista que por vezes é irônico e cômico e por vezes empático e emocionado.

Senhorita Matty Jenkyns – protagonista do romance, a senhorita Matty é generosa, calma e doce. Sua fragilidade e melancolia, no entanto, escondem um forte senso de justiça e moralidade para além das etiqueta.

Senhorita Deborah Jenkyns – irmã mais velha de Matty é a líder da sociedade em Cranford. Todas as outras mulheres confiam em seu julgamento com relação às devidas condutas sociais e etiquetas a serem ou não praticadas. Severa e muito séria, a senhorita Deborah demonstra ao longo do romance possuir também fina sensibilidade.

Senhorita Pole – amiga de longa data das irmãs Jenkyns, ela revela para Mary sobre o grande amor da juventude da senhorita Matty.

Sam Brown – Antigo membro do exército britânico que se muda para Cranford quando passa a ser empregado na construção da linha férrea. Viúvo, Brown se dedica a cuidar das filhas principalmente da mais velha, gravemente doente. Apesar de ser honrado e generoso, Sam Brown inicialmente desagrada as mulheres de Cranford por sua falta de modos.

Peter Jenkyns – irmão marinheiro das senhoritas Matty e Deborah. A razão de sua decisão de partir para o estrangeiro é um certo tabu na sociedade de Cranford. 

Senhor Hoggins – médico-cirurgião da cidade é um senhor que desfruta de um certo respeito em Cranford. No entanto, suas maneiras e comportamentos são considerados rudes e típicos da plebe.

Lady Glenmire – passa a viver em Cranford depois de se tornar viúva. É muito admirada e respeitada por todas as mulheres da pequena cidade por ter se conectado, pelo casamento, com uma família de certa nobreza. Causa surpresa às vizinhas com seu comportamento modesto e simples, livre de esnobismos, e posteriormente por suas escolhas. 

Signor Brunoni – mágico itinerante que chega inesperadamente a Cranford em busca de público. Sua vida pregressa guarda, além de dramas, uma conexão com uma das famílias da cidade.

Recepção

Essa exploração minuciosa por outro lado já foi vista como um dos defeitos de Cranford. Na época de seu lançamento, críticos apontaram a falta de um enredo propriamente dito – “dificilmente há algo que possa ser chamado de enredo” – ou de uma narrativa que fosse além do prosaico – o romance era uma “coleção de esboços” onde “dificilmente há um incidente solitário que não seja uma ocorrência do dia a dia”.7 

A tais críticas Jacob Jewusiak defende que que a aparente falta de um enredo claro é na verdade parte da estrutura do conto, organizado em torno de vivências femininas: ” as amazonas exploram trajetórias alternativas do tempo que deslocam o desejo do leitor pelo fim da história por um desejo interminável por mais histórias”.8

Em artigo sobre a publicação de Cranford, Dorothy Collin nos dá conta que o conto foi popular desde sua primeira aparição em Household Words. Ano após ano, principalmente quando de sua edição em livro, o conto continuou a ser comprado. Inicialmente, Cranford se limitaria a apenas um número, porém a recepção foi boa o bastante para que Dickens pedisse a Gaskell que ela continuasse. Dickens, em carta para a colega de ofício, declarou achar Cranford “adorável, e tocante da maneira mais leve e delicada”.9

Após a história chegar ao fim, Elizabeth Gaskell recebeu propostas de publicação do romance em livro. Ela então consultou Dickens. O escritor não detinha os direitos sobre Cranford, o que nos leva a crer que Gaskell o fez por consideração e polidez. A resposta dele foi meiga e calorosa, incentivando a publicação do livro e reiterando que “com relação a trabalhos futuros, eu de fato te asseguro que você nunca terá escrito em excesso para Household Words, e ainda não escreveu nem a metade do que seria suficiente [para nós]”.10

Ilustração original de Cranford de Elizabeth Gaskell
Frontispício de Cranford com ilustração de George du Marier. Fonte: VW.

Adaptação

Mais recentemente, Cranford foi adaptada em 2007 pela BBC em uma minissérie de cinco capítulos. O elenco foi escalado entre os mais conhecidos atores britânicos. Judi Dench (Victoria & Adbul) ficou com o papel de Matty Jenkyns. Eileen Atkins foi Deborah Jenkyns. Jim Carter (Downton Abbey) fez o papel do capitão Brown. Michael Gambon foi o senhor Thomas Holbrook. Imelda Staunton (Harry Porter) fez o papel da senhorita Pole. 

É possível ler Cranford no original por meio do site do projeto Gutenberg.

Artigos Relacionados

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Bibliografia

ARMSTRONG, Mary A. Sex and the Provincial Girl: Desire and Time in Elizabeth Gaskell’s Cranford and North and South. Nineteenth-Century Gender Studies. Issue 15.3 (Winter, 2019). Aqui

CHAPPLE, John. Introduction. Cranford and Other Stories. Wordsworth Classics. 2009.

COLLIN, Dorothy W. The composition and publication of Elizabeth Gaskell’s Cranford. Bulletin of the John Rylands Library, Manchester, 38 pages. 1986. Disponível no Jstor. 

JEWUSIAK, Jacob. The End of The Novel: Gender and Temporality in Elizabeth Gaskell’s Cranford. Nineteenth Century Gender Studies. Issue 7.3 (Winter 2011). Aqui

KAWASAKI, Akiko. Illness and Aging in Elizabeth Gaskell’s. Journal of the Institute of Cultural Science. 78 (2014): 301-322.   Aqui

KOIVUVAARA, Pirjo. Hunger, Consumption, and Identity in Elizabeth Gaskell’s Novels. Tese de doutorado. Universidade de Tampere. 2012. Aqui.

SCHAUB, Melissa. Performativity in Elizabeth Gaskell’s Shorter Fiction – A Case Study in the Uses of Theory. Palgrave Macmillan. USA. 2019.

ÖGÜNÇ, Ömer. The Question of Victorianism and Progress in Gaskell’s Cranford: a Romanticised Offer. SEFAD, 2017 (37): 351-360. Aqui.

WRIGHT, Terence. Elizabeth Gaskell ‘We’re not angels’: Realism, Gender, Values. Palgrave Macmilann. 1995.

Referências

  1. WRIGHT, Terence. Elizabeth Gaskell ‘We’re not angels’: Realism, Gender, Values. Palgrave Macmilann. 1995, p. 132. ↩︎
  2. ARMSTRONG, Mary A. Sex and the Provincial Girl: Desire and Time in Elizabeth Gaskell’s Cranford and North and SouthNineteenth-Century Gender Studies. Issue 15.3 (Winter, 2019), p. 5. ↩︎
  3. WRIGHT, Terence. Elizabeth Gaskell ‘We’re not angels’: Realism, Gender… p. 139. ↩︎
  4. WRIGHT, Terence. Elizabeth Gaskell ‘We’re not angels’: Realism, Gender… p. 140. ↩︎
  5. CHAPPLE, John. Introduction. Cranford and Other Stories. Wordsworth Classics. 2009… p. 9. ↩︎
  6. SCHAUB, Melissa. Performativity in Elizabeth Gaskell’s Shorter Fiction – A Case Study in the Uses of Theory. Palgrave Macmillan. USA. 2019, p. 44. ↩︎
  7. JEWUSIAK, Jacob. The End of The Novel: Gender and Temporality in Elizabeth Gaskell’s Cranford. Nineteenth Century Gender Studies. Issue 7.3 (Winter 2011). p. 1. ↩︎
  8. JEWUSIAK, Jacob. The End of The Novel: Gender and Temporality in Elizabeth Gaskell’s Cranford… p. 33. ↩︎
  9. COLLIN, Dorothy W. The composition and publication of Elizabeth Gaskell’s Cranford. Bulletin of the John Rylands Library, Manchester, 38 pages. 1986. p. 60. ↩︎
  10. COLLIN, Dorothy W. The composition and publication of Elizabeth Gaskell’s Cranford… p. 63. ↩︎

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