Enigma de um Dia de Giorgio de Chirico

Enigma de um Dia é um quadro do pintor Giorgio de Chirico. Feito em 1914, Enigma de um Dia faz parte de uma série de Enigmas que o artista produziu na década de 1910 que têm como característica a representação de amplos ambientes a céu aberto, com construções de grandes dimensões como pontes e edifícios.

O trabalho com a luz solar, frequentemente marcando as horas da tarde, em consonância com as cores e jogos de sombra, fazem dos Enigmas de de Chirico obras com um forte sentimento de reflexão, solidão e nostalgia.

Durante sua vida, Giorgio de Chirico produziu duas cópias de Enigma de um Dia. Uma delas compõe o acervo do MoMA de Nova Iorque enquanto a outra encontra-se no MAC-USP. A obra foi adquirida pela pintora Tarsila do Amaral e passou por algumas coleções privadas brasileiras antes de compor o acervo do museu.


Enigma de um Dia de Giorgio de Chirico
Enigma de um Dia (1914) de Giorgio de Chirico. Fonte: MAC.

Produção de Enigma de um dia

Em 1911, Giorgio de Chirico se mudou para Paris e começou a frequentar os ambientes artísticos da capital francesa. Já em 1912, o pintor conquistou um espaço no Salão de Outono parisiense, no qual exibiu 3 telas. Uma delas foi um retrato de seu irmão Andrea, e as outras duas são Enigma do Oráculo e Enigma de uma Tarde de Outono.1

Seu trabalho chamou a atenção de colegas artistas como Pablo Picasso e Guillaume Apollinaire, cujo retrato (premonitório?), feito por de Chirico em 1914, se tornaria uma das obras mas conhecidas de seu tempo.

Enigma de um Dia é parte de uma série de “enigmas” produzida por Giorgio de Chirico na década de 1910. Em 1910, de Chirico começou com Enigma do Oráculo. No ano seguinte, apareceu Enigma da Hora. Em 1912, o pintor produziu O Enigma da Chegada e Enigma da Tarde. A tela Enigma de uma Hora Estranha apareceu no ano seguinte e Enigma da Fatalidade em 1914.2

Alguns dos temas que o pintor desenvolveu nos seus enigmas, estiveram também presente na produção poética de de Chirico. Em seu poema “A Vontade da Estátua”, Karina Ribeiro observou uma forte relação com a serie enigmas, o que inclui Enigma de um Dia:

“[…]  Oh, a tristeza daquela estátua solitária. Beatitude. E nunca o sol. Nunca o amarelo consolador da terra iluminada. Ela quer. Silêncio. Ela ama sua alma formidável. Ela venceu. E agora o sol parou no alto, no centro do céu e a estátua sentindo uma felicidade eterna afoga sua alma na contemplação de sua sombra.”3 

Ribeiro nota como A Vontade da Estátua é também semelhante a uma passagem de Assim Falou Zaratustra, do filósofo alemão Nietzsche, o qual por sua vez foi uma das grandes referências de Giorgio de Chirico: “Silêncio! Silêncio! Não acaba de se consumar o mundo? Que é que me sucede? (…) Poço da eternidade, alegre abisso do meio-dia que faz estremecer… quando absorverás em ti a minha alma? (…) o sol achava-se exatamente por cima da cabeça dele (…).”4 

Elementos de Enigma de um Dia

A série de enigmas têm características muito particulares do estilo que Giorgio de Chirico desenvolveu na década de 1910 e lhe consagrou como célebre e reconhecido pintor ainda em vida. Um dos elementos de marcantes desses quadros é a presença de indivíduos em profunda reflexão relativamente próximos a estátuas, as quais podem representar poetas, filósofos ou militares. Grande parte dos estudiosos da obra de de Chirico relacionam esse elemento à forte influência que o pintor italiano recebeu do artista Arnold Böckling e, mais especificamente sua tela Ulisses.5

Enigma de um Dia, assim como os outros Enigmas e diversas obras de de Chirico, transmite uma forte sensação de silêncio, marasmo e entorpecimento. Tudo parece estar tanto ou mais parada quanto a estátua do centro. Sobre essas qualidades, Karina Ribeiro concorda com Vincenzo Trione que vê as praças de De Chirico como “cidades da ausência”. A pesquisadora ainda adiciona:

“as construções são inabitadas e as chaminés estão fora de funcionamento, não fossem os trens fumegantes e as pequenas figuras humanas que aparecem vez ou outra, que não apagam, no entanto, a atmosfera de vazio, enfatizada pela melancolia do fim de tarde”6 

Juntamente com o elemento da estátua, o silencio permeia tanto a obra pictórica quanto a obra textual de Giorgio de Chirico. Karina Ribeiro mais uma vez cita escritos do artista para expandir os significados de suas pinturas. Em um texto de De Chirico, publicado na revista do grupo surrealista Le Minotaure (nº 5 de 1934): “Toda criação é feita em silêncio”; “Assim se pode dizer que toda boa criação deve ser concebida em silêncio”; “Quando se trata de pintura é necessário observar o silêncio.”7 

Posteriormente, De Chirico voltou a tratar do silêncio e sua relação com o “processo criativo do pintor-filósofo”: “(…) em seus aposentos situados sobre os pórticos, os filósofos meditam. Suas janelas duplas ainda que permitam que se goze da vista das colinas, dos portos, das vastas e belas praças ornadas com estátuas bem esculpidas e instaladas sobre bases baixas, impedem que os barulhos de fora venham perturbar seu trabalho de pensadores metafísicos.”8

André Breton junto com Enigma de um dia de Giorgio de Chirico
André Breton com Enigma de um Dia. Foto de Man Ray. Fonte: HA.

Crítica e recepção de Enigma de um dia

Há ao menos duas cópias do quadro Enigma de um Dia de Giorgio de Chirico. Aquela que se encontra no MAC-USP, e que convencionou-se chamar o número II, e aquele que pertence ao Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, conhecido como o número I.9

Uma das obras mais célebre de Giorgio de Chirico, Enigma de um dia foi exposto no Salon des Indépendents de Paris em 1914 e foi fotografado pelo artista e fotógrafo surrealista Man Ray em 1914, junto de André Breton, líder do movimento.10 A obra ainda apareceu na publicação Le Surréalisme et la peinture de 1928. E escolhida, após enquete com os membros do grupo surrealista, como “arquétipo do movimento pela liberação do inconsciente”.11  

Acredita-se que o exemplar atualmente no MoMA tenha sido a obra no centro dessas atividades, apesar da questão permanecer em aberto.12Dois desenhos preparatórios de Enigma de um Dia também compõem o acervo do MAC-USP.

Foto do casal Yolanda Penteado e Ciccillo Matarazzo com Enigma de um Dia
Yolanda Penteado e Ciccillo Matarazzo com a pintura Enigma de Um Dia. Imagem do Acervo MAC-USP. Fonte: Jornal USP.
Localização de Enigma de um dia

Enigma de um dia passou por diversas mãos no Brasil até fazer parte da coleção do MAC-USP em que se encontra hoje. Em 1954, o quadro foi presenteado por um grupo de artista a Ciccillo Matarazzo. Na época, Ciccillo Matarazzo havia sido demitido da presidência da Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, celebrado naquele ano. O quadro de De Chirico foi acompanhado de um discurso em homenagem à Matarazzo e sua “participação e incentivo prestados à arte.”13 

Carlos Pinto Alves, na ocasião afirmou, no final do discurso: “E como símbolo de nossa amizade e admiração por você, pedimos licença para oferecer-lhe um quadro de Chirico, que, em sua concepção metafísica, sempre lhe lembrará a bela península italiana banhando-se nas águas azuis de nosso mar Mediterrâneo, fonte batismal de todas as artes e civilizações.”14

Conforme Mariana Ribeiro nos atesta, os jornais da época cobriram a cerimônia e apontam personalidades como Tarsila do Amaral, Flavio de Carvalho, Rudá de Andrade, Waldemar Cordeiro, Alfredo Volpi e outros entre os presentes. Ciccillo Matarazzo, ao receber o valioso presente, agradeceu, segundo o jornal Tribuna da Imprensa, dizendo: “Um quadro como êste que me deram era muito bom para guardar em minha casa. Por isso, já fica mesmo aqui, no Museu.15  

Foto de Tarsila do Amaral com Ciccillo Matarazzo e René Thiollier.
René Thiollier, Ciccillo Matarazzo e Tarsila do Amaral em foto de outubro de 1951. Fonte: Folha de São Paulo.

No entanto, uma pergunta surge: como foi adquirido Enigma de um Dia para que ele pudesse ser dado a Ciccillio Matarazzo? Ribeiro nos dá conta que Ana Mae Barbosa, professora que assumi a direção do MAC-USP em 1986, tomou o depoimento de Antônio Candido de Mello e Souza no qual o professor e pesquisador afirmava que a obra havia sido de Oswald de Andrade.16 

Primeiro filho do poeta, Rudá Andrade, chegou a afirmar que costumava jantar “olhando o Enigma de um Dia”. O professor Wolfgang Pffeifer foi mais um dos que afirmaram que o famoso quadro de De Chirico havia pertencido a Oswald de Andrade.17 

O poeta e escritor modernista chegou a escrever sobre sua própria tela, na coluna 3 Linhas e 4 Verdade, de 14 de dezembro de 1949: “Trouxe-o [Dioclécio Campos] para ver, em meu apartamento, uma das grandes telas de Giorgio de Chirico que guardo, a qual ele qualificou de autêntico tesouro do modernismo. Trata-se de uma das Piazze d’Italia, de sua primeira época, não as que hoje o artista contrafaz e rifa.18 

 Aracy Amaral, biógrafa de Tarsila do Amaral e ex-diretora do MASP, conta sobre como Enigma de um Dia foi comprada do próprio Giorgio de Chirico, na Europa. Para a pesquisadora, o quadro na verdade foi propriedade inicialmente de Tarsila do Amaral:“[Enigma de um Dia]  pertenceu ao casal Tarsila/Oswald de Andrade, adquirido diretamente do artista, nos anos 20, foi vendido a Samuel Ribeiro.”19

No início dos anos 1930, com a grande quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929, as exportações de café de São Paulo despencaram, o que afetou diretamente Tarsila do Amaral e sua família, cujo pai era fazendeiro de café. Nesse contexto, a artista se viu obrigada a vender parte de sua coleção de obras de arte para custear uma viagem à União Soviética, ocorrida em 1931.

A pintora brasileira considerou Samuel Ribeiro “extremamente generoso”20 por ter comprado Enigma de um Dia, a obra mais cara de sua coleção. Com os recursos da venda, Tarsila viajou para a União Soviética e teve contato com o trabalho de artistas como Valentina Kulagina e Hans Baluschek. Tais pintores foram uma de suas referências para a criação daquele que seria, em suas palavras, a “mais importante obra” da sua carreira: Operários, de 1932.

Mais tarde, Oswald de Andrade adquiriu O Enigma, e o revendeu ao grupo que presenteou a tela a Francisco Matarazzo Sobrinho, Ciccillio Matarazzo. Este, por sua vez, dou o quadro junto com outras obras de sua coleção para o então MAM-SP que posteriormente se tornou Museu de Arte Contemporânea da USP. 

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Retrato de Guillaume Apollinaire de Giorgio de Chirico

Referências

  1. SOBY,James. Thrall., Giorgio de Chirico, New York, 1955, p. 32. ↩︎
  2. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 73. ↩︎
  3. DE CHIRICO, Giorgio. Scritti/1. Romanzi e scritti critici e teorici 1911-1945. Organização de Andrea Cortellessa, edição dirigida por Achille Bonito Oliva. Milão: Classici Bompiani, 2008, pp.655-656 apud: RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 76. Do poema Esperanças ( Espoirs), de 1913 e 1914, Karina Ribeiro retirou outros exemplos tais como: “O dia está radiante a praça cheia de sol”, “Um pintor pinou uma enorme chaminé vermelha”, “Que um poeta adora como uma divindade”, “Nós içamos tantas bandeiras sobre a estação”, “Enquanto o guerreira de pedra dorme na praça obscura”. CHIRICO, Giorgio. L’art métaphysiqueTextes réunis et présentés par Giovanni Lista, Paris: L’Échoppe, 1994, pp. 39-40 apud RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 75. ↩︎
  4. NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra, São Paulo: Editora Martin Claret, 2004, pp. 209-210. apud RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 76.  ↩︎
  5. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 74. ↩︎
  6. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 76. ↩︎
  7. DE CHIRICO, Giorgio. Il Meccanismo del Pensiero. Critica, polemica, autobiografia 1911-1943, organizado por Maurizio Fagiolo dell’Arco. Turim: Giulio Einaudi editore, 1985. p. 262, 263,264. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 78. ↩︎
  8. DE CHIRICO, Giorgio. Il Meccanismo del Pensiero. Critica, polemica, autobiografia 1911-1943, organizado por Maurizio Fagiolo dell’Arco. Turim: Giulio Einaudi editore, 1985. p. 262. apud RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 78. ↩︎
  9. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 70. ↩︎
  10. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 70. ↩︎
  11. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 70, nota 194. ↩︎
  12. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 72. ↩︎
  13. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 52. ↩︎
  14. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 53. ↩︎
  15. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 53. nota 141. ↩︎
  16. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 54. ↩︎
  17. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 54. ↩︎
  18. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 55-56, nota 150. ↩︎
  19. RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 56. ↩︎
  20. AMARAL, Aracy. Tarsila Cronista. São Paulo: EDUSP, 2001, p. 22. apud RIBEIRO, Mariana. A viagem do Argonauta. As poéticas de Giorgio de Chirico no acervo do MAC-USP: Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas. 2009. p. 56. ↩︎
Data: 1914
Estilo: Pintura metafísica
Origem: Paris, França
Autor: Giorgio de Chirico
Dimensão: 83 cm x 130 cm
Material: Óleo sobre tela
Localização Atual: MAC/USP

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