Mansfield Park é um livro escrito por Jane Austen e publicado em 1814. Ele foi o terceiro da autora a vir a público. De tom sóbrio e melancólico, Mansfield Park trata de questões como a pobreza, adultério, casamento por interesse e o poder do dinheiro. Sua heroína, Fanny Price, é por muitos considerada uma perfeita Cinderela e nisso se diferencia de outras protagonistas austenianas espirituosas e irreverentes como Emma e Elizabeth Bennet.
Mansfield Park é por muitos considerado o livro mais complexo de Jane Austen e, talvez por isso, seja uma de suas obras menos conhecidas e adaptadas para outras mídias.
A escrita de Mansfield Park
Uma série de diferentes estudos já apontou as diversas referências da vida de Jane Austen presentes em Mansfield Park. Sabe-se que Jane Austen conhecia Portsmouth – onde mora a família sem recursos de Fanny Price. A cidade, importante porto onde navios de guerra eram consertados, era barulhenta, entulhada e lotada de pessoas que viviam direta ou indiretamente da marinha: trabalhadores das docas, marinheiros de diversas posições, comerciantes, prostitutas. Além disso, a grandiosa propriedade do senhor Rushworth foi inspirada na propriedade Stoneleigh Abbey do tio de Jane Austen Thomas Leigh.
Outras interpretações vêm em Mansfield Park uma paródia da Regência, período da história inglesa em que Jane Austen viveu. Nesse sentido, personagens como Tom Bertram e Henry Crawford são comparados ao príncipe regente que a escritora desprezava. Alguns estudos ainda apontam o romance como uma atualização da comédia As You Like It de Shakespeare.
Ruína moral e escravidão: Características do enredo de Mansfield Park
Mary e seu irmão Henry são provavelmente a dupla de antagonistas mais perversos da obra de Jane Austen: não se vê em seus outros livros dois personagens tão cinicamente afinados em conseguir o que planejam. Ligados por laços de sangue, próximos em idade, aparência e vícios e qualidades, os irmãos são os grandes desestabilizadores de Mansfield Park. Ou talvez eles sejam apenas aqueles que escancaram as verdadeiras personalidades de seus habitantes. Nas palavras de Paul Contino: “Mansfield Park é um lugar em ruína moral“1.
No mesmo tom, Regis Martin diz sobre os irmãos: “E como perfeitamente urbanos e charmosos os dois são. E mesmo assim nenhum único tijolo ficaria em pé na casa da virtude se os dois habitassem no lugar“2.
Sobre eles, e o futuro que Jane Austen os reserva na narrativa, Theresa Kenney diz: “o retrato que Austen faz deles é intrigante e repulsivo ao mesmo tempo; a irreverência deles é mais atraente do que o choque e a seriedade de Fanny e Edmund […] as coisas que os tornam brilhante também os tornam frios; no fim, aquilo que os faz reluzir indica um superficialidade que deliberadamente exclui as profundezas do ser humano”3.
Por mais interesseiras que algumas das vilãs de Jane Austen se mostrem – Lady Susan se destacando – nenhuma chega ao nível de Mary Crawford, que tenta dissuadir seu par romântico a mudar de profissão. Seu desprezo pela igreja e os devotos atinge o auge quando a personagem declara diretamente para Edmund, que finaliza os estudos para se tornar pastor, “um clérigo não é nada”. Resumindo, os irmãos Crawfords em sua sedução e corrupção são “o trabalho de uma artesã: eles são hábil e primorosamente escritos como personagens Maquiavélicos“4.

Tanto a protagonista Fanny Price quanto partes do enredo – e mesmo o enredo por inteiro – já foram compreendidos à luz de uma interpretação cristã. Matthew Taylor, por exemplo, enxerga no episódio da visita à propriedade do senhor Rushworth uma atualização da queda do homem.5. Alaisdar Macintyre vê em Fanny um caso extremo de encarnação das virtudes em detrimento de todo o resto de atrativos:
“Não é um acidente que duas heroínas [aqui o autor se refere à Anne Elliot de Persuasão] que exibem constância mais marcantemente são menos charmosas do que outras heroínas de Jane Austen e que uma delas, Fanny Price, seja considerada realmente não atraente por muitos críticos. Mas a falta de charme de Fanny é crucial para as intenções de Jane Austen. Uma vez que charme é a qualidade caracteristicamente moderna que aqueles que não tem ou que simulam ter virtudes usam para sobreviver nas situações características da vida social moderna.[..] Fanny não tem charme; ela só tem as virtudes.”6
Tais referências à doutrina não surpreendem quando lembramos que Jane Austen era filha de um clérigo e que um de seus irmãos seguiu os passos do pai. Há também aqueles que interpretam a “falta de charme” ou a timidez e fragilidade de Fanny em termos médicos, cuja raiz poderia ser problemas de saúde e/ou psicológicos.7 Para Nina Auerbach, a passividade e discrição de Fanny são extremas a ponto de torná-la um personagem insuportável, uma espécie de vampiro que se alimenta da vida social de outros ou um Frankenstein, errante, que não pertence a lugar algum8.
Por outro lado, na visão de Susanne Cammack “se Fanny pode parecer, às vezes, a menos ativa das heroínas de Austen, ela é também é a mais resoluta, a que é menos feita de tola, e a mais socialmente consciente de todas as mulheres” da escritora9.
O Senhor Thomas é o único personagem de Jane Austen a ter declaradamente possessões ultramarinas, mais especificamente em Antígua. De fato, a trama se inicia com a partida do Senhor Thomas para Antígua em uma tentativa de melhorar o desempenho financeiro de sua propriedade caribenha. Assim, ele, bem como toda a família Bertram, se vêm implicados na exploração do trabalho escravo que ocorria em todo o continente americano e outras partes.

Alguns defendem que sua partida seja precisamente uma alusão aos problemas causados pela abolição do tráfico negreiro pela Inglaterra em 1807. A discussão sobre essa menção tão incômoda – afinal, Jane Austen poderia simplesmente tê-la evitado e composto o senhor Bertram como um proprietário de terras qualquer – é de fato extensa.
Artigos e mais artigos já surgiram na tentativa de interpretar o significado de Antígua em Mansfield Park e, como consequência, a opinião de Jane Austen sobre a escravidão e o tráfico. Um dos principais estudos sobre o tema é o de Edward Said, Culture and Imperialism (1993) , que defende que no romance há uma aceitação casual da escravatura, um “silêncio estético”, típica do Ocidente. No entanto, uma série de pesquisadores e estudiosos já apontaram indícios do abolicionismo de Jane Austen. Além disso, basta lembrar que o senhor Thomas, por quase todo o romance, é um dos antagonistas de Mansfield Park e que, como tal, recebe sua dose de “punição cármica” no final.10
Personagens
Fanny Price – heroína do romance, a tímida jovem vive com seus tios e primos na propriedade que dá nome ao livro. Ela é secretamente apaixonada por seu primo Edmund e precisará lidar com a inesperada convivência dos energéticos e expansivos irmãos Crawford junto à sua família.
Edmund Bertram – O mais novo dos filhos homens do senhor Bertram, Edmundo é sensato e responsável. O único da família a se importar de fato com o bem estar de Fanny. Edmund se apaixona ardentemente por Mary Crawford que insiste para que ele escolha uma profissão mais rentável e prestigiosa.
Senhor Thomas Bertram – patriarca da família Bertram e proprietário de Mansfield Park. Uma figura autoritária e severa que acaba descobrindo a real personalidade dos filhos depois de uma série de desventuras.
Senhora Bertram – tia de Fanny e mãe de Tom, Edmund, Maria e Julia. A senhora Bertram é totalmente lânguida e alheia aos acontecimentos de sua própria casa. Não participa ativamente da vida dos filhos e assiste horrorizada quando os mesmos começam a pagar pelas consequências de seus próprios atos.
Tia Norris – irmã mais velha da senhora Bertram. A senhora Norris vive em Mansfield Park e é responsável por muitas das decisões da casa, já que a senhora Bertram é passiva e indolente. Persegue Fanny insistentemente durante toda a trama e sempre a lembra sua condição de inferioridade social.
Maria Bertram – a mais velha das filhas da família Bertram, Maria é bonita e charmosa. Logo no início do livro, tais características lhe garantem a atenção e depois o afeto daquele se torna seu noivo, senhor Rushworth. Isso não impede no entanto que passe a ter sentimentos por Henry Crawford.
Senhor Rushworth – Um jovem riquíssimo, cuja propriedade, Sotherton Court, é maior que Mansfield Park. O senhor Rushworth é o noivo de Maria Bertram. Sua personalidade é afável e alegre, no entanto é descrito também como bobo e imaturo.
Tom Bertram – O mais velho dos irmãos Bertram, Tom passa a maior parte do livro em Londres, apostando e bebendo.
Julia Bertram – É a mais nova dos irmãos Bertram. Não tão bonita quanto sua irmã mais velha, disputa as atenções de Henry Crawford com a irmã Maria.
William Price – Irmão mais velho de Fanny, William é um aspirante da marinha que, por falta de influência e contatos, não consegue progredir em sua carreira. É o único que se importa com Fanny além de Edmund.
Recepção
Como terceiro livro a ser publicado por Jane Austen, Mansfield Park apareceu ao público como sendo obra da mesma escritora de Razão e Sensibilidade e Orgulho e Preconceito. A autoria declarada, a primeira edição de Mansfield Park se esgotou em cerca de seis meses e o lucro obtido foi superior aos dos dois primeiros sucessos da escritora. Houve uma segunda edição também bem sucedida em 1816. No entanto, a edição seguinte não teve o mesmo desempenho e ainda acabou pesando sobre os lucros do romance a ser lançado em seguida, Emma.
Diferente de outras obras, de Mansfield Park chegou até nós com uma coletânea feita por Jane Austen das opiniões de diferentes pessoas de sua família e círculo social do romance. Já críticas em publicações especializadas só apareceram em 1821.
Em 1843, Thomas Macaulay colocou Jane Austen ao lado do poeta William Shakespeare dada a variedade de seus personagens. A London Quarterly Review de 1922 lembra que Mansfield Park era o romance de Jane Austen preferido do poeta Lord Tennyson. Já no século XX, o autor Vladimir Nabokov afirmou, no contexto do curso que deu em Cornell e na Wellesley College, das obras mestres das literatura europeia, que Mansfield Park era “maravilhosamente genial”.11

Adaptações
Assim como outras obras de Jane Austen, Mansfield Park foi adaptado para o cinema. A mais recente, em 2007, foi dirigida por B. Macdonald. Billie Piper é Fanny Price, Blake Pitson faz o papel de Edmund Bertram e Hayley Atwell encarna Mary Crawford. Também relativamente bem conhecida é a adaptação da diretora Patricia Rozema de 1999. Frances O’ Connor está no papel de Fanny Price e Jonny Lee Miller é Edmund.
Artigos Relacionados
Bibliografia
AUERBACH, Nina. Jane Austen’s dangerous charm: feeling as one ought about Fanny Price. Persuasions n.2, 1980. Introdução Aqui
BARCHAS, Janine. Reading Jane Austen with Vladimir Nabokov. No site da John Hopkins University Press. Aqui.
BUZIAN, Maria Luiza Ribeiro. Fanny Price: de heroína invisível a novo ideal feminino. Literausten. Belo Horizonte, V. 7, 84 páginas, 1º semestre. 2020. Aqui
CARL, Katy. “The greatest of nuisances” Fanny Price as work in progress in Mansfield Park.Mansfield Park. Ignatius Press. San Francisco. 2010.
CAMMACK, Susanne S. Fanny Price’s Social Cartography in Mansfield Park. Nineteen century studies. 2015. Disponível no academia.edu da autora.
CONTINO, Paul J. Manfield Park and Isaiah 53: Fanny Price’s redemptive Role. Mansfield Park. Ignatius Press. San Francisco. 2010.
DOOLEY, Leah. Performance, Desire, and Spectatorship in Mansfield Park. The Macksey Journal, Vol. 1 [2020], Art. 4 Aqui.
ESTACIO, Denise. From Amelioration to Redemption: Discussing Patricia Rozema’s adaptation of Mansfield Park. Philia. v.3, n.1 (2021). Aqui.
GOMES, Tânia Maria de Oliveira. A Cinderela austeniana: uma análise sobre a intertextualidade em Mansfield Park. Entrepalavras, Fortaleza – ano 5, v.5, n.1, p. 59-74, jan/jun 2015. Aqui.
GIUFFRE, Giulia. Sex, Self and Society in Mansfield Park. Sydney Studies in English. Vol. 9 (1983). Aqui.
HAGEN, Kelly. “‘The Imagination Supplied What The Eye Could Not Reach’: The Unconscious Self-Deception of Mansfield Park’s Fanny Price”. Persuasions On-Line 32.1 (Winter 2011). Aqui.
FRANCUS, Marilyn. The monstrous mothers of Mansfield Park. Persuasions on-line. V.35 N.1, 2014. Aqui.
KALPAKGIAN, Mitchell. The economic, social, romantic, and moral aspects of marriage in Mansfield Park. Mansfield Park. Ignatius Press. San Francisco. 2010.
KENNEY, Theresa. Mansfield Park and the conscience outside the self. Mansfield Park. Ignatius Press. San Francisco. 2010
MACINTYRE, Alasdair. Jane Austen, William Cobbett, and Jacobin Virtues. Mansfield Park. Ignatius Press. San Francisco. 2010
MARTIN, Regis. On the Uses of Irony and Limits of Moralism in Jane Austen’s Mansfield Park. Mansfield Park. Ignatius Press. San Francisco. 2010.
MCMASTER, Juliet. The Talkers and Listeners of Mansfield Park. Persuasions. N.17, 1995. Aqui
NUNN, Roger Charles. Empire and Jane Austen: A Contrapuntal Reading. Studies in English Literature. English Literary Society of Japan, (English Number), (March 1999). Disponível no academia do autor.
SHEEHAN, Collen A. To govern the Winds: Dangerous Acquaintances at Mansfield Park. Persuasions.Vol. 25, nº1, Winter 2004. Aqui
TAKEI, Akiko. “Your complexion is so improved”: A diagnosis of Fanny Price’s “Dis-ease”. Eighteenth-Century Fiction. University of Toronto Press. Volume 17, Number 4, July 2005, pp. 683-700. Aqui.
TAYLOR, Matthew. Mansfield Park and Scandal. Antropoetics 16, n. 1. 2010. Aqui.
TAYLOR, Matthew. Traipsing into the Forest: Landscapes and Rivalry in Jane Austen’s Mansfield Park. Antropoetics 14, n.2. 2009. Aqui
TROTTER, Jack. Liberty, restraint, and Social Order in Jane Austen’s Mansfield Park. Mansfield Park. Ignatius Press. San Francisco. 2010.
WHITE, Edward M. A Critical Theory of Mansfield Park. Studies in English Literature, 1500-1900 , Autumn, 1967, Vol. 7, No. 4, Nineteenth Century (Autumn, 1967), pp. 659-677. Disponível no Jstor.
Artigo Mansfield Park da Wikipédia em inglês e francês
Referências
- CONTINO, Paul J. Manfield Park and Isaiah 53: Fanny Price’s redemptive Role. Mansfield Park. Ignatius Press. San Francisco. 2010. ↩︎
- MARTIN, Regis. On the Uses of Irony and Limits of Moralism in Jane Austen’s Mansfield Park. Mansfield Park. Ignatius Press. San Francisco. 2010. ↩︎
- KENNEY, Theresa. Mansfield Park and the conscience outside the self. Mansfield Park. Ignatius Press. San Francisco. 2010. ↩︎
- SHEEHAN, Collen A. To govern the Winds: Dangerous Acquaintances at Mansfield Park. Persuasions.Vol. 25, nº1, Winter 2004. ↩︎
- TAYLOR, Matthew. Traipsing into the Forest: Landscapes and Rivalry in Jane Austen’s Mansfield Park. Antropoetics 14, n.2. 2009. ↩︎
- MACINTYRE, Alasdair. Jane Austen, William Cobbett, and Jacobin Virtues. Mansfield Park. Ignatius Press. San Francisco. 2010. ↩︎
- TAKEI, Akiko. “Your complexion is so improved”: A diagnosis of Fanny Price’s “Dis-ease”. Eighteenth-Century Fiction. University of Toronto Press. Volume 17, Number 4, July 2005, pp. 683-700. ↩︎
- AUERBACH, Nina. Jane Austen’s dangerous charm: feeling as one ought about Fanny Price. Persuasions, n.2, 1980. ↩︎
- CAMMACK, Susanne S. Fanny Price’s Social Cartography in Mansfield Park. Nineteen century studies. 2015. p. 39. ↩︎
- Para um contraponto ao artigo de Said ver NUNN, Roger Charles. Empire and Jane Austen: A Contrapuntal Reading. Studies in English Literature. English Literary Society of Japan, (English Number), (March 1999). ↩︎
- BARCHAS, Janine. Reading Jane Austen with Vladimir Nabokov. No site da John Hopkins University Press. ↩︎