Minha ama e eu de Frida Kahlo

Minha Ama e eu é quadro de Frida Kahlo pintado em 1937. O título auto biográfico se refere em grande medida à ama de leite que amamentou Frida Kahlo. No entanto, para além da vida privada da pintora, a obra traz uma serie de elementos que remetem à cultura dos povos nativos do México e suas crenças.

Célebres por seus autorretratos, Frida Kahlo escolheu em seu Minha Ama e eu explorar tal tema de maneira incomum e inovadora. Retratou a si própria com corpo de bebê e a cabeça e expressão de adultas, ao seio de sua ama. Sabe-se que logo após o nascimento da pintora, sua mãe Matilde Calderón não pode amamenta-la já que engravidou novamente.

Quadro Minha Ama e Eu de Frida Kahlo
Minha Ama e Eu (1937). Fonte: fridakahlo.org

Uma ama de leite, de origem nativa, então foi chamada para a pequena Frida. Como a artista deu conta para a critica de arte Raquel Tibol:  “Minha mãe não pode me amamentar. (…) Uma ama me alimentou e lavavam os peitos dela toda vez que eu ia mamar […]”.1 A ama no entanto, foi dispensada quando os pais de Frida descobriram seu alcoolismo.

Tais acontecimentos fizeram com que críticos de arte e estudiosos da vida e obra de Frida Kahlo interpretassem Minha Ama e Eu sob uma perspectiva majoritariamente auto biográfica. So Ra Lim por exemplo, enxerga na Ama o reflexo de uma “relação fria e distante2 do ponto de vista social. A submissão da amamentadora – uma mulher indígena e muito provavelmente de extratos sociais mais baixos – à lavagem de seus seios denota como os Kahlo a consideravam alguém sem higiene, suja.

A pesquisadora ainda relaciona a obra ao motivo que levou à contratação da Ama bem como um fato marcante na relação de Frida com a irmã já na vida adulta. Dentre as várias relações extraconjugais que Diego Rivera manteve ao longo de seu casamento com Frida, seu caso com a própria irmã mais nova da artista com certeza foi o que mais a machucou.

Tendo isso em mente, Minha mãe e Eu, para So Ra Lim, foi criado no contexto a partir da lembrança daquela primeira vez em que a pintora foi preterida em favor de sua irmã: “Isso significa que o quadro não representa apenas a experiencia de abandono materno mas também, ou talvez até mais enfaticamente, a dor de ser rejeitada e substituída por sua irmã”.3

Minha Ama e Eu: Frida como filha do México ancestral

Em análises anteriores como as de Autorretrato na Fronteira do México com os Estados Unidos e Autorretrato com Colar de Espinhos, já afirmamos que a obra de Frida tende a ser interpretada completamente em termos de sua própria vida privada e que tais interpretações ofuscam ou alienam outros entendimentos.

Nancy Deffebach faz uma analise de Minha Ama e Eu que aponta para questões outras que não apenas as da vida pessoal e familiar de Frida: “a significância de Minha ama e Eu não é a de que ela foi amamentada por uma mulher outra que não sua mãe, mas que ela foi nutrida culturalmente pela herança pré-colombiana do México”.4Apontamento que é um reforço das afirmações de Hayden Herrera sobre o mesmo quadro:

“[o quadro] é uma declaração de sua fidelidade e continuidade à cultura mexicana. É nessa ideia que o antigo patrimônio mexicano renasce em cada nova geração, e que Frida, como artista adulta, continua sendo alimentada pelos seus antepassados indígenas”.5

O termo antepassados usado pela biógrafa deve ser tomado tanto em seu sentido geral, de Frida como cidadã mexicana, quanto em seu sentido particular, se lembrarmos que Frida era descendente de indígenas pelo lado de sua mãe. 

Em artigo, Luís Roberto Vera considera as muitas referencias à cultura nativa presentes em Minha Ama e Eu. Para o pesquisador, a máscara da Ama – e também sua composição em formato de pirâmide – remetem à deusa das caverna venerada em Teotihuacan, antiga capital asteca.6 Tal ser divino, segundo Vera, nutria uma intima relação com a antiga cidade e ambas eram consideradas uma única e mesma entidade, uma vez que a capital se encontrava sobre um terreno onde caverna e grutas abundam: Teotihuacan estava cruzada internamente por grutas labirínticas.

Construída sobre essa rede subterrânea, a cidade, de ser o lugar sagrado da deusa, passou a ser a própria deusa”.7 Nesse sentido, para Vera, a ama/deusa se faz uma extensão do ambiente que ele inclusive identifica como sendo o de uma caverna: “cada um dos atributos físicos da ama se duplica na paisagem interior: seu pé como a terra, o leite que escorre das paredes da caverna com uma cascata invisível”.8

O pesquisador prossegue e tece um reflexão em torno da máscara da ama, elemento que sem dúvida capta a atenção do observador. Vera identifica a imagem com mascaras encontradas em tumbas de membros da nobreza de Tetihuacan. Objeto fúnebre sendo usado por alguém alimentando um recém nascido aponta, segundo Vera, a aproximação da morte e da vida não apenas na obra de Frida como um todo – presente por exemplo em seu Retrato de Luther Burbank – como também na cultura mexicana.9 

Citando a célebre critica de arte e especialista da obra de Frida Kahlo, Raquel Tibol, Vera resume seu ponto: ” A máscara de pedra, relacionada ao culto dos mortos, aparece nesse quadro como dádiva da vida. As pupilas ocas, os lábios entreabertos, a solene rigidez parecem garantir a eternidade do ciclo vital“.10

Lembramos que interpretações do(s) quadro(s) de Frida Kahlo que enfatizam os acontecimentos de sua própria vida não excluem necessariamente outros possíveis entendimentos mais ligados ao meio cultural em que a pintora viveu. Em um comentário pertinente que parece de alguma forma unir ambas as leituras, Diego Rivera deu seu ponto de vista do quadro feito por sua falecida esposa:

“[Ela] pintou sua mãe e sua ama, sabendo que na verdade não conhecia seu rosto; o daquela que amamenta é apenas máscara indígenas de pedra dura, e seu aglomerado de glândulas gotejam leite como chuva que fecunda a terra, e lagrima que fecunda o prazer.”11

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Bibliografia

DEFFEBACH, Nancy. Frida Kahlo: Heroism of Private Life. In: BRUNK, Samuel. FALLAW, Ben. Heroes and Hero Cult in Latin America. Austin: University of Texas Press, 2006.

LIM, So Ra. Da Imagem à Palavra: medo e ousadia em Hye Seok Rha, Tarsila do Amaral e Frida Kahlo. Tese de doutoramento. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2005. Aqui

VERA, Luis Roberto. “Raíz mesoamericana: Octavio Paz, Efraín Huerta y Frida Kahlo”. Impossibilia Nº4, Págs. 202-232 (Octubre 2012). Disponível no academia.

Referencias

  1. LIM, So Ra. Da Imagem à Palavra: medo e ousadia em Hye Seok Rha, Tarsila do Amaral e Frida Kahlo. Tese de doutoramento. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2005. p. 256. Aqui. ↩︎
  2. LIM, So Ra. Da Imagem à Palavra: medo e ousadia em Hye Seok Rha, Tarsila do Amaral e Frida Kahlo… p. 265. ↩︎
  3. LIM, So Ra. Da Imagem à Palavra: medo e ousadia em Hye Seok Rha, Tarsila do Amaral e Frida Kahlo… p. 267. ↩︎
  4. DEFFEBACH, Nancy. Frida Kahlo: Heroism of Private Life. In: BRUNK, Samuel. FALLAW, Ben. Heroes and Hero Cult in Latin America. Austin: University of Texas Press, 2006. p. 180. ↩︎
  5. HERRERA, Hayden. Frida: A Biography of Frida Kahlo. New York: Harper & Row, 1983, p. 220. In: LIM, So Ra. Da Imagem à Palavra: medo e ousadia em Hye Seok Rha, Tarsila do Amaral e Frida Kahlo. Tese de doutoramento. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2005. Aqui. p. 265, 266. ↩︎
  6. VERA, Luis Roberto. “Raíz mesoamericana: Octavio Paz, Efraín Huerta y Frida Kahlo”. Impossibilia Nº4, Págs. 202-232 (Octubre 2012). Disponível no academia. p. 211. ↩︎
  7. VERA, Luis Roberto. “Raíz mesoamericana: Octavio Paz, Efraín Huerta y Frida Kahlo”. Impossibilia Nº4, Págs. 202-232 (Octubre 2012). Disponível no academia. p. 211. ↩︎
  8. VERA, Luis Roberto. “Raíz mesoamericana: Octavio Paz, Efraín Huerta y Frida Kahlo”. Impossibilia Nº4, Págs. 202-232 (Octubre 2012). Disponível no academia. p. 211. ↩︎
  9. VERA, Luis Roberto. “Raíz mesoamericana: Octavio Paz, Efraín Huerta y Frida Kahlo”. Impossibilia Nº4, Págs. 202-232 (Octubre 2012). Disponível no academia. p. 212. ↩︎
  10. TIBOL, Raquel. Frida Kahlo en su luz más intima. 2005. México: Lumen [Random House Mandadori].In: VERA, Luis Roberto. “Raíz mesoamericana: Octavio Paz, Efraín Huerta y Frida Kahlo”. Impossibilia. Nº4, Págs. 202-232 (Octubre 2012). p. 212. Disponível no academia. ↩︎
  11. TIBOL, Raquel. Frida Kahlo en su luz más intima. 2005. México: Lumen [Random House Mandadori]. p. 156. In: VERA, Luis Roberto. “Raíz mesoamericana: Octavio Paz, Efraín Huerta y Frida Kahlo”. Impossibilia.Nº4, Págs. 202-232 (Octubre 2012). p. 212. Disponível no academia. ↩︎
Data: 1937
Origem: México
Autor: Frida Kahlo
Dimensão: 30,5 x 34, 7 cm
Material: Óleo sobre placa de metal
Localização Atual: Museu Dolores Olmedo Patino, México

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