O Ladrão de Cadáveres de Robert Louis Stevenson

O Ladrão de Cadáveres é um conto do autor escocês Robert Louis Stevenson. Publicado em 1884, o conto se baseia em um caso ocorrido na capital escocesa envolvendo o célebre professor anatomista Robert Knox que obtinha, supostamente sem saber, cadáveres de maneira ilegal para serem usados em suas aulas. O crime ganhou grande repercussão em todo Reino Unido. 

O Ladrão de Cadáveres trata não apenas do florescimento da anatomia enquanto área do conhecimento, mas do contexto de forte industrialização e urbanização na Grã Bretanha, onde cidades cada vez maiores tornavam possíveis crimes como o assassinato graças ao individualismo, anonimato e indigência social.

Em português, o conto ganhou, além de O Ladrão de Cadáveres, mais um título: Rapa Carniça. Tratando do cotidiano da classe médica em uma capital movimentada e com elementos do horror e do gótico, O Ladrão de Corpos antecipou tema e estrutura daquela que seria a obra mais célebre de Robert Louis Stevenson: O Médico e o Monstro.


Capa de lançamento de O Ladrão de Cadáveres de Robert Louis Stevenson
Capa de O Ladrão de Cadáveres na edição de Natal da Pall Mall Magazine. Fonte: Bonhams.

O Contexto da escrita de O Ladrão de Cadáveres

Há várias versões do caso de roubo de cadáveres envolvendo o famoso doutor Knox e ocorrido no ano de 1828. Segundo uma delas, publicada por Thomas Ireland em 1829 e intitulada The West Port Murders (Os assassinatos de West Port), detalha que na manhã do dia 31 de Outubro dois homens, William Burke e William Hare, convidaram uma moradora de rua chamada Margaret Docherty para onde viviam. 

Eles teriam oferecido algum tipo de favor ou ato de caridade à Docherty. No entanto, uma vez ali, os homens assassinaram Margaret e transportaram seu corpo para o laboratório de anatomia e dissecação do doutor Robert Knox e ganharam 5 libras pelo corpo.1 Ao que tudo indica, mesmo as esposas dos respectivos Williams estavam envolvidas.

Na primeira metade do século XIX, os corpos de condenados à morte eram automaticamente encaminhados aos laboratórios de anatomia universitários. De modo que as execuções públicas eram a principal fonte desses corpos, necessários ao ensino e pesquisa. O caso envolvendo a dupla Burke Hare mudaria isso. 

A dupla havia fornecido uma série de outros corpos ao laboratório de anatomia anteriormente. Conforme detalhe Carolina Motta, em seu mestrado Três Textos de Stevenson: o ser humano, a ciência e horror do final do século XIX vitoriano, não se sabe exatamente quais desses corpos foram roubados de sepulturas ou resultaram de assassinatos perpetrados por Burke e Hare com fins comerciais: acredita-se que ao menos 16 pessoas (três homens, doze mulheres e uma criança) foram mortas pela dupla para terem seus corpos vendidos ao longo do ano de 1828.2

Conforme nos explica Carolina Motta, toda a trama de morte começou a ruir quando um casal de testemunhas viu os dois transportando o corpo de Docherty. Hare foi até a polícia com o intuito de confessar seu crime e conseguiu um acordo no qual denunciou o esquema do comparsa Burke. William Burke, então, foi processo, confessou sua culpa e recebeu a sentença de pena de morte. 3 

No dia 28 de janeiro de 1829, William Burke foi executado por enforcamento. Segundo Motta, meses antes da execução, foi divulgado não apenas que Burke morreria na forca mas que seu corpo seria entregue a Alexander Monro, professor de Anatomia da Universidade de Edimburgo, para ser dissecado publicamente – a dissecações, exames e experiências públicas eram comuns no século XIX – e utilizado durante aulas.4

Monro, acredita-se, não se limitou a apenas dissecar o corpo de Burke. O médico também teria, como ele próprio escreveu em seu diário, usado um pouco do sangue do corpo de Burke para fazer uma entrada em seu caderno: 

Isso está escrito com o sangue de William Burke, que foi enforcado em Edimburgo em 28 de janeiro de 1829, pelo assassinato da Senhora Campbell ou Docherty. O sangue foi extraído de sua cabeça em primeiro de fevereiro de 1829.5 

Alguns anos depois do ocorrido, em 1832, o Parlamento do Reino Unido votou pela aprovação do chamado Anatomy Act. A lei estabelecia que os corpos a serem dissecados por profissionais ou estudantes de medicina deveriam ser doados. O Anatomy Act tinha como principal objetivo coibir o roubo de corpos e o assassinato de pessoas para a venda e usa de seus cadáveres.6

Para além da repercussão de todo o caso, a qual Robert L. Stevenson certamente foi exposto, supõem-se que o autor tenha tido ainda mais contato com o ocorrido já que um de seus tio havia estudado sob orientação do professor Knox.7

A publicação  de O Ladrão de Cadáveres se deu apesar de Robert L. Stevenson não ter apreciado o resultado final de seu trabalho (veja mais no item recepção e crítica abaixo). O escritor submeteu o conto para a Pall Mall Gazette em sua edição de natal do ano de 1884, de modo que a obra havia sido escrita antes disso. Para o natal daquele ano, Stevenson vinha trabalhando em outro conto, Markheim, um de seus mais célebres, porém esse ainda não tinha o número de palavras pedidas pelo editor de modo que O Ladrão de Cadáveres o substituiu na Pall Mall.8 

Elementos do enredo de O Ladrão de Cadáveres

A trama de O Ladrão de Cadáveres gira ao redor não apenas do doutor K, mas também de estudantes de medicina e do ambiente de laboratórios nos quais esses jovens passavam grande parte de seu tema. Nesse sentido, o conto se aproxima daquele que seria o mais famoso texto de Robert Louis Stevenson: O Médico e o Monstro de 1886 . Tratando das desventuras do doutor Jenkyll e a invenção de seu tônico transformador, O Médico e o Monstro compartilhar com o Ladrão a rotina laboratorial e a profissão de seus personagens. 

Para além disso, os dois contos também se organizam a partir de uma dupla de personagens os quais são como que imagens espelhadas um do outro, que encarnam dois extremos: bem e mal, humano e monstruoso. Sobre essa característica dos dois contos, Joseph Egan concluiu:

“Todas essas histórias empregam o cenário e a atmosfera para iluminar a verdade psicológica, e cada uma delas, como em O Ladrão de Cadáveres, a introdução do duplo marca a extensão da auto desumanização do personagem ou os meios pelos quais a consciência o confronta com seu próprio mal.”9

A estreita relação entre O Ladrão e O Médico e o Monstro foi apontada, ou ao menos delineada, pelo autor em artigo para a Scribner’s Maganize de 1888. Em seu texto, “A Chapter on Dreams” (Um capítulo sobre Sonhos), Stevenson declara:

“Por muito tempo eu andei tentando escrever uma história sobre esse assunto, encontrar um corpo, um veículo, para esse forte sentimento de um ser duplo de um homem; […] tentei um corpo depois do outro em vão.”10

Carolina Motta destaca ainda como a ficção de Robert Louis Stevenson contrariava muitas das narrativas da época e país do escritor. Vivendo no epicentro da revolução industrial e do colonialismo, Stevenson e seus contemporâneos com frequência eram direcionados a pensar nos excluídos e vítimas de tais processos como os grandes responsáveis pelas mazelas sociais. Grupos como os dos operários, dos desabrigados e marginalizados, das prostitutas, órfãos e estrangeiros sofriam com a vilanização e exclusão. Nesse sentido, Motta afirma:

Em sua reconfiguração, Stevenson inverte a ordem de “culpados”, responsabilizando, na narrativa, os “poderosos” da modernidade, os estudiosos da ciência e a burguesia.”11

Personagens de O Ladrão de Cadáveres

Fettes: possui um passado misterioso que envolve suas atividades enquanto aluno monitor da matéria de anatomia. Próximo do professor K na época da universidade, o leitor encontra Fettes, no início do conto, vivendo uma vida anônima, pobre e carregada de culpa.

MacFarlane: ex-companheiro de laboratório de Fettes, MacFarlane se tornou um prestigiado médico. Inescrupuloso e cheio de ambição, o jovem não apenas 

Professor K: anatomista, o professor é apresentado como profissional competente e famoso. 

Senhor Gray: colega de MacFarlane, ele acaba se tornando uma vítima. 

Filme O Ladrão de Cadáveres baseado no conto de Robert Louis Stevenson.
Filme Baseado no conto de Stevenson. Fonte: BelaLugosiBlog.
Recepção e crítica de O Ladrão de Cadáveres

Robert Louis Stevenson considerava seu conto “horrível” e deixou-a de lado com um sentimento de “nojo justificado”. O Ladrão foi um dos poucos contos que nunca chegou a ser republicado em qualquer coleção das obras de Stevenson enquanto o autor viveu.12

As referências ao caso envolvendo o doutor Knox não passaram despercebidas aos leitores de Ladrão de Cadáveres. Como a culpa de Knox nunca foi provada, alguns desses leitores escreveram à revista e criticaram o tom acusatório de Stevenson no conto. Joseph Goodsir foi um deles. Inicialmente, Goodsir destaca o elemento de fantasioso de O Ladrão, “Irão dizer, com certeza, que O Ladrão de Cadáveres é uma peça de ficção”, apesar disso, porém, ele prossegue com o seu ponto de vista crítico: 

“[…] sendo ele mesmo um homem de Edimburgo teria o predisposto a um melhor conhecimento dos fatos sobre os quais ele baseou sua história”  e relembra o veredicto de inocência do médico.13

Adaptações de O Ladrão de Cadáveres

Em 1945, com o título de The Body Snatcher, foi lançado um filme inspirado no conto de Stevenson. A produção contou com a direção de Robert Wise e tinha em seu elenco, entre outros atores, Bela Lugosi. 

Entre outras versões da história do doutor Knox, podemos citar a adaptação para quadrinhos feita em 1966 por Archie Goodwin e Reed Crandall. Nela, MacFarlane se torna assistente de laboratório – em vez de estudante – do célebre anatomista. A versão foi publicada no numero 7 da revista de terror Creeps.14

Bibliografia

EGAN, Joseph J. Grave Sites and Moral Death: A Reëxamination of Stevenson’s “The Body-Snatcher”. English Literature in Transition, 1880-1920, Volume 13, Number 1,1970, pp. 9-15. Disponível em: https://muse.jhu.edu/pub/74/article/368084/pdf

MOTTA, C. N. da. TRÊS TEXTOS DE STEVENSON: O SER HUMANO, A CIÊNCIA E HORROR DO FINAL DO SÉCULO XIX VITORIANO. 2017. 130 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018. Disponível em: https://siga.ufpr.br/siga/visitante/trabalhoConclusaoWS?idpessoal=37769&idprograma=40001016009P0&anobase=2018&idtc=68

YAN, Rae X. Robert Louis Stevenson as Philosophical Anatomist: The Body Snatcher. English Literature in Transition, 1880-1920, Volume 62, Number 4, 2019, pp. 458-481, p. 458. Disponível em: https://muse.jhu.edu/pub/74/article/721856/pdf

Referências

  1. YAN, Rae X. Robert Louis Stevenson as Philosophical Anatomist: The Body Snatcher. English Literature in Transition, 1880-1920, Volume 62, Number 4, 2019, pp. 458-481, p. 458. ↩︎
  2. MOTTA, C. N. da. TRÊS TEXTOS DE STEVENSON: O SER HUMANO, A CIÊNCIA E HORROR DO FINAL DO SÉCULO XIX VITORIANO. 2017. 130 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018. p. 35. ↩︎
  3. MOTTA, C. N. da. TRÊS TEXTOS DE STEVENSON: O SER HUMANO, A CIÊNCIA E HORROR DO FINAL DO SÉCULO XIX VITORIANO. 2017. 130 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018. p. 37. ↩︎
  4. MOTTA, C. N. da. TRÊS TEXTOS DE STEVENSON: O SER HUMANO, A CIÊNCIA E HORROR DO FINAL DO SÉCULO XIX VITORIANO. 2017. 130 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018. p. 38. ↩︎
  5. MOTTA, C. N. da. TRÊS TEXTOS DE STEVENSON: O SER HUMANO, A CIÊNCIA E HORROR DO FINAL DO SÉCULO XIX VITORIANO. 2017. 130 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018. p. 38. ↩︎
  6. MOTTA, C. N. da. TRÊS TEXTOS DE STEVENSON: O SER HUMANO, A CIÊNCIA E HORROR DO FINAL DO SÉCULO XIX VITORIANO. 2017. 130 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018. p. 39. ↩︎
  7. YAN, Rae X. Robert Louis Stevenson as Philosophical Anatomist: The Body Snatcher. English Literature in Transition, 1880-1920, Volume 62, Number 4, 2019, pp. 458-481. p. 465. ↩︎
  8. YAN, Rae X. Robert Louis Stevenson as Philosophical Anatomist: The Body Snatcher. English Literature in Transition, 1880-1920, Volume 62, Number 4, 2019, pp. 458-481. p. 467. ↩︎
  9. EGAN, Joseph J. Grave Sites and Moral Death: A Reëxamination of Stevenson’s “The Body-Snatcher”. English Literature in Transition, 1880-1920, Volume 13, Number 1,1970, pp. 9-15. p. 13. ↩︎
  10. YAN, Rae X. Robert Louis Stevenson as Philosophical Anatomist: The Body Snatcher. English Literature in Transition, 1880-1920, Volume 62, Number 4, 2019, pp. 458-481. p. 473. ↩︎
  11. MOTTA, C. N. da. TRÊS TEXTOS DE STEVENSON: O SER HUMANO, A CIÊNCIA E HORROR DO FINAL DO SÉCULO XIX VITORIANO. 2017. 130 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018. p. 50. ↩︎
  12. YAN, Rae X. Robert Louis Stevenson as Philosophical Anatomist: The Body Snatcher. English Literature in Transition, 1880-1920, Volume 62, Number 4, 2019, pp. 458-481. p. 467. ↩︎
  13. YAN, Rae X. Robert Louis Stevenson as Philosophical Anatomist: The Body Snatcher. English Literature in Transition, 1880-1920, Volume 62, Number 4, 2019, pp. 458-481. p. 469. ↩︎
  14. Artigo Body Snatcher da wikipédia em inglês. ↩︎
Data: 1884
Gênero: Horror
Obras posteriores: O Médico e O Monstro
Origem: Reino Unido
Autor: Robert Louis Stevenson

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