O Retrato de Luther Burbank de Frida Kahlo

O Retrato de Luther Burbank é um quadro feito pela pintora mexicana Frida Kahlo no ano de 1931. Produzido quando Frida morava nos Estados Unidos, o Retrato de Luther Burbank é uma homenagem ao famoso cientista e agrônomo norte-americano. Para além de elementos que remetem diretamente à vida de Burbank e sua carreira, a obra traz referências às culturas indígenas mexicanas, tão valorizadas por Frida Kahlo. O quadro faz parte do acervo do museu Dolores Olmedo do México.

Quando o famoso agrônomo e geneticista Luther Burbank faleceu, sua família já sabia que seu último desejo não era o de ser enterrado em um cemitério ou mesmo cremado. O cientista havia deixado expressa sua vontade de ser sepultado junto a um cedro do Líbano, que ele mesmo havia plantado, na propriedade onde sua casa se localizava.

Segundo o próprio Burbank “Eu gostaria de saber que a força do meu corpo vá para dentro da força de uma arvore“.1 Charlie Damour, autor de um artigo sobre o retrato que Frida Kahlo fez de Burbank, vê na fala dele uma possível influência do mestre yogi Paramaham Yogananda, fundador do movimento Self-Realization Fellowship

Sepultura de Luther Burbank ao pé do Cedro e foto de Diego Rivera e Frida Kahlo visitando a propriedade. Fonte: Artigo em Plant Nut.

Burbank ficou famoso por suas experiências com hibridização de espécies. A ele são creditadas uma variedade de novos frutos como a Ameixa Santa Rosa e uma batata que ganhou seu nome Batata Russet.2

Em 1931, Diego Rivera e Frida Kahlo, casados havia apenas dois anos, visitaram a casa de Burbank e foram recebidos por sua viúva. Diego tinha ficado fascinado com o trabalho de Burbank e, além de visitar o seu túmulo, o inclui, de maneira discreta, em sua Alegoria da Califórnia3 pintado no refeitório da Bolsa de Valores de São Francisco cujo término data de fevereiro de 1931. O mural de Rivera Sangre de los Martires Fertiliza na Tierra, de 1926, com um título altamente sugestivo, trás um retrato de Tina Modotti “brotando” de uma semente, podem ter influenciado Frida.4 

Luther Burbank na Alegoria da California (1931) e Tina Modotti na Germinação (1926-27). Ambos de Rivera. Fonte: artigo de Damour

Tendo sido Inspirada mais ou menos por Diego Rivera, a pesquisadora Lucretia Giese ressalta em artigo que as semelhanças dos trabalhos de marido e mulher cessam aí: 

“Nas mãos de Rivera, Burbank é “alguém que faz”, um cientista trabalhador ajoelhado sobre uma planta, presumivelmente fazendo um enxerto, enquanto o Burbank de Frida é “alguém que pensa”, uma abstração. A imagem de Rivera reflete as buscas de Burbank; a de Kahlo as emblematiza”.5

No atendo à figura central, vemos que Burbank tem em mãos uma planta ornamental, um filodendro da variedade monstera. Sua característica marcante é, como o nome científico indica, um crescimento excessivo.6 Lucretia Giese destaca que a planta foi colocada nas mãos de Burbank com uma profunda intenção artística de Frida, já que o Filodendro não compôs nenhum dos experimentos do cientista. Primeiramente pelo próprio nome do vegetal: “philo” de amor e “dendron” de árvore, “que se refere ao hábito de tais plantas de germinarem em torno de árvores“, ou seja, uma trepadeira. Tal ponto ecoa fortemente tanto a carreira de Burbank quanto seu desejo de ser enterrado ao pé do cedro do Líbano.7

O Retrato de Luther Burbank de Frida Kahlo
Retrato de Luther Burbank. Fonte: FridaKahlo.org

O Retrato de Luther Burbank e as crenças indígenas mexicanas

Para além disso, há a importância ritualística que uma variedade de filodendro tinha para os antigos astecas e fato que Frida certamente sabia. Chamada pelos nativos de Huacalxochitl em Nahuatl (espécie que pode ser a  Philidendon affine ou P. pseudoradiatum matuda), a planta é descrita na História Geral das Coisas da Nova Espanha de Bernardino de Sahagún.  Na obra ela aparece retratada ao menos três vezes. Conforme explica Giese: “O valor da Huacalxochitl para os astecas jaz em suas propriedades medicinais e cerimoniais.”

O último imperador asteca, Montezuma II (1480 – 1520), de acordo com com Sahagún, incluía-a entre as “flores preciosas” oferecidas ao deus da guerra, Huitzilopochtli. Sahagún também notou que algumas mulheres usavam a planta para aumentar a fertilidade”.8 No entanto, as referências à cultura indigena traçadas pela pintora no quadro não se restringem à planta. 

Segundo a autora da biografia mais famosa de Frida, Hayden Herrera, o Retrato de Burbank é o primeiro exemplo da aproximação entre vida e morte e, mais especificamente, da fertilização da vida pela morte. Tal tema seria um dos preferidos de Frida, vindo a ser trabalhado e retrabalhado em diversas ocasiões. Na análise de Damour, o crânio e os ossos do esqueleto visíveis, os dois pés de Burbank fincados na tumba, as raízes que ligam o homem ao corpo abaixo, exposto.

Toda a pose e representação do cientista apontam para a morte e também para a vida que surge a partir dela.9 Charlie Damour aponta que a relação de morte como raiz da vida é mais profunda que uma mera alegoria de estilo de Frida, mas uma referência aberta à religião e sistema de crença dos povos indígenas mesoamericanos. Para o pesquisador, a ausência de um dos braços do esqueleto do quadro pode ser uma projeção da própria dor (física e emocional) de Frida devido ao seu fatídico acidente, como também uma reinterpretação dos sacrifícios humanos ocorridos no México pré-colombiano.10 

Ainda explorando os significados das mortes rituais, o pesquisador cita as colunas esculpidas de Piedras Negras da Guatemala, onde se vê uma planta, uma árvore da vida, nascer a partir das entranhas de um homem sacrificado no altar.11

Piedras Negras da Guatemala. Fonte: artigo de Damour.

A crença na chamada Árvore da Vida não foi uma exclusividade dos povos originários do México atual região. Podemos observar o mesmo em diferentes grupos de diversas épocas como os vikings. No caso dos indígenas americanos, podemos citar uma narrativa registrada no Popol Vuh que nos dá conta de uma árvore proibida. Segundo o mito, a filha de Cachumaquic, chamada Ixquic, sentiu uma vontade irresistível de ver de perto a tal árvore. 

Penduradas nas árvores havia também as cabeças de Aphu carregadas de uacales. Ixquic quis então comer os frutos da árvore. Das cabeças então escorreu saliva, que caiu na palma da jovem curiosa. Ao voltar para casa, Ixquic concebeu de imediato e ficou grávida os gêmeos Hunahpú e Ixbalamqué, que se viriam a ser tornar os deuses do milho e depois deuses do sol e da lua.12 

Indo mais além, Deffebach em análise do quadro cita uma série de tradições mesoamericanas em que seres humanos e plantas se juntam e formam seres híbridos. Um exemplo é retirado da mitologia mixteca na qual os governantes nasciam de uma árvore em Apoala, conforme pode ser observado no códice Selden. Outro exemplo é a deusa da vegetação de Teotihuacán.13

A presença dessa interpenetração da vida e da morte foi apenas uma das formas com que Frida expressou, homenageou e celebrou suas próprias origens indígenas. A mãe de Frida era filha de um descendente de espanhóis e também de indígenas. Seu pai era europeu, nascido na Alemanha mas filho de húngaros judeus. De modo que Frida não se via apenas como uma pessoa nascida no México, mas uma descendente direta dos povos originários, uma mexicana, como podemos ver em quadros como Meus Avós, Meus Pais e Eu e mesmo Minha Ama e eu

O uso de uma peça e estátuas indígenas é uma forma mais facilmente identificável de referência às crenças religiosas mesoamericanas feita por Frida – que pode ser vista em O Tempo Voa e principalmente em Auto Retrato na Fronteira do México com os Estados Unidos – enquanto o Retrato de Burbank se concentra não na exposição e seleção de símbolos e objetos pré-colombianos, mas no sistema de crença em si e sua configuração da vida a partir da morte.

Por fim, Retrato de Luther Burbank é mais que uma homenagem imagética de uma artista a um cientista falecido, mas uma forma de entender a obra e lugar na vida de um e de outro.

Bibliografia

DAMOUR, Charlie Le Portrait de Luther Burbank de Frida Kahlo et l’arbre de vie maya, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Images, mémoires et sons, mis en ligne le 14 juin 2018, Aqui.

DEFFEBACH, Nancy. Human Plant Hybrids in the Art of Frida Kahlo and Leonora Carrington. Curare. N.11, (Summer 1997), 97-129. Disponível no Academia.edu da autora.

GIESE, Lucretia Hoover. A Rare Crossing: Frida Kahlo and Luther Burbank. American Art , Spring, 2001, Vol. 15, No. 1 (Spring, 2001), pp. 52-73. Disponível no Jstor

Referências

  1. DAMOUR, Charlie Le Portrait de Luther Burbank de Frida Kahlo et l’arbre de vie maya, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Images, mémoires et sons, mis en ligne le 14 juin 2018. parágrafo 4. ↩︎
  2. DEFFEBACH, Nancy. Human Plant Hybrids in the Art of Frida Kahlo and Leonora Carrington. Curare. N.11, (Summer 1997), 97-129. p. 102 ↩︎
  3. DAMOUR, Charlie Le Portrait de Luther Burbank de Frida Kahlo et l’arbre de vie maya…parágrafo 6. ↩︎
  4. DAMOUR, Charlie Le Portrait de Luther Burbank de Frida Kahlo et l’arbre de vie maya…parágrafo 10. ↩︎
  5. GIESE, Lucretia Hoover. A Rare Crossing: Frida Kahlo and Luther Burbank. American Art , Spring, 2001, Vol. 15, No. 1 (Spring, 2001), pp. 52-73. p. 55. ↩︎
  6. DAMOUR, Charlie Le Portrait de Luther Burbank de Frida Kahlo et l’arbre de vie maya…parágrafo 5. ↩︎
  7. GIESE, Lucretia Hoover. A Rare Crossing: Frida Kahlo and Luther Burbank… p. 59. ↩︎
  8. GIESE, Lucretia Hoover. A Rare Crossing: Frida Kahlo and Luther Burbank… p. 60. ↩︎
  9. DAMOUR, Charlie. Le Portrait de Luther Burbank de Frida Kahlo et l’arbre de vie maya…parágrafo 9. ↩︎
  10. DAMOUR, Charlie Le Portrait de Luther Burbank de Frida Kahlo et l’arbre de vie maya…parágrafo 12. ↩︎
  11. DAMOUR, Charlie Le Portrait de Luther Burbank de Frida Kahlo et l’arbre de vie maya…parágrafo 27. ↩︎
  12. DAMOUR, Charlie Le Portrait de Luther Burbank de Frida Kahlo et l’arbre de vie maya…parágrafo 23. ↩︎
  13. DEFFEBACH, Nancy. Human Plant Hybrids in the Art of Frida Kahlo and Leonora Carrington. Curare. N.11, (Summer 1997), 97-129. Disponível no Academia.edu da autora. p. 97 ↩︎

Data: 1931
Origem: Estados Unidos
Autor: Frida Kahlo
Dimensão: 86,5 x 61,7 cm
Material: Óleo sobre tela
Localização Atual: Museu Dolores Patiño Olmedo, México

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