O Sonâmbulo de René Magritte foi pintado em 1946. O quadro faz parte de uma série de obras que Magritte produziu durante os últimos anos da Segunda Guerra Mundial e que compõem seu chamado período Renoir ou, segundo o próprio artista, Surrealismo em Plena Luz Solar.
O Sonâmbulo contrasta e se diferencia de outras obras célebres de René Magritte principalmente no uso de várias cores em tons vivos e brilhantes e também na aplicação da tinta, feita em pinceladas semelhantes àquelas dos artistas impressionistas como o próprio Renoir. Um dos motivos por trás de tamanha mudança foi a vivência da Segunda Guerra Mundial por parte de René Magritte, cujo país de origem, a Bélgica, foi invadida pelo exército alemão em 1940.
O Sonâmbulo, na época em que foi produzido, teve um recepção fria por parte da crítica e público, ávidos e cativados pelo estilo que Magritte havia desenvolvido nos anos anteriores. Porém, atualmente, o quadro é representativo da versatilidade do pintor bem como evidência de sua experiência de vida.

A Produção de O Sonâmbulo
Em 1944, em uma carta para seu amigo Marcel Mariën, René Magritte comentou sobre uma visão que tivera na noite anterior. Magritte havia visto uma coruja empoleirada em uma paisagem com árvores. Três dias mais tarde, o pintor enviou um cartão postal para Mariën com um breve rabisco. O artista ainda explicava: “A imagem com a coruja tinha mudado e se tornado um retrato-coruja.”1
Em sua publicação Titres, Magritte como o pássaro em Sonâmbulo encarna uma ambiguidade: “A coruja, como o sonâmbulo, não está consciente das ações que executa. Sem saber, ela está fumando e com os olhos abertos.”2
Outros quadros explorando o mesmo tema de autorretratos com animais foram produzidos em meados da década de 1940. Exemplos deles são A Boa Sorte de 1945 (La bonne fortune) e O Civilizador (Le civilisateur) do ano seguinte. Tais obras, conforme será analisado no item seguinte, foram produzidas sob forte influência do estilo impressionista.
Em grupo, tais quadros compõem o que denominou-se estilo “Renoir” de Magritte. O próprio artista, porém, intitulou ele mesmo tais obras, usando a expressão Surrealismo em Plena Luz Solar, que Magritte tornou pública em um manifesto publicado no mês de outubro de 1946.

Conforme Patricia Allme, autora da biografia de René Magritte escrita em 2019, o chamado período do Surrealismo em Plena Luz Solar, tinha como “objetivo representar uma ofensiva, atraente e alegre, contra a ameaça da Segunda Guerra Mundial.”3 A autora nos lembra que René Magritte, com a invasão nazista da Belgica em 1940, passou meses fugindo, primeiro para Paris, depois para Carcassonne (com o amigo Scutenaire) e depois Harmoir antes de retornar para Bruxelas.
Allmer afirma que o manifesto escrito por Magritte em 1946, e assinado por colegas artistas como Nougé, Mariën, Scutenaire, pode ser considerado um terceiro manifesto surrealista. Uma carta de Magritte para o líder do movimento surrealista, André Breton, de 25 de janeiro de 1946, é elucidativa:
“A pintura do meu ‘período solar’ está obviamente em contradição com muitas coisas das quais estávamos convencidos antes de 1940… A confusão e pânico que o Surrealismo queria criar de modo a colocar tudo em questão foram muito mais concretizados pelos idiotas nazistas do que por nós, e estava fora de questão evitar as consequências. Em oposição ao pessimismo geral, eu proponho a busca pela alegria, pelo prazer. Eu sinto que cabe a nós, que temos alguma noção do como os sentimentos são inventados, para fazer alegria e prazer, que são tão prosaicos e além do alcance, acessíveis a todos nós.”4
Elementos de Sonâmbulo de René Magritte
Um dos principais elementos de O Sonâmbulo, para além da própria coruja, é o cachimbo que a ave tem na boca. Nenhum objeto poderia ser mais emblemático do que esse. Se lembramos que Magritte havia produzido seu célebre A Traição das Imagens cerca de 15 anos antes de O Sonâmbulo. Nele, o artista pintou a imagem de um cachimbo acompanhada da frase “isso não é um cachimbo”.
Sobre sua mais famosa obra, Magritte afirmou anos depois: “O famoso cachimbo. Como as pessoas me recriminaram por causa dele. Mas, porém, eu conseguiria enche-lo [de fumo]? Não, é só uma representação, não é? Então, se eu tivesse escrito no meu quadro ‘Isso é um cachimbo’ eu teria mentido!”5 A imagem do cachimbo seria inserida por René Magritte em diversos quadros ao longo de toda a sua carreira.
Segundo o autor da nota sobre Sonâmbulo no site da Christie’s, a inserção do cachimbo reforça o fato de que ele se tornou “um símbolo das explorações de Magritte no campo da percepção.” Para além disso, o cachimbo aprofunda a antropomorfização da coruja, lhe deixando ainda mais humana, o que aumenta a sensação de incompreensão do quadro.
A maneira que René Magritte escolheu pintar o O Sonâmbulo também se destaca, uma vez que tanto as cores vivas e quentes, quanto a aplicação da tinta, se diferenciam marcadamente do estilo que o belga desenvolvera até então.
O Mecenas foi exposto no mês de novembro de 1946 na Galerie Dietrich em Bruxelas. No catálogo do evento, Paul Nougé escreve com entusiasmo sobre o novo estilo do amigo:
“O propósito de Magritte, o nosso propósito, não mudou. O mundo ao nosso redor parece estar se tornando menor, escolhendo, tremendo na direção de um sistema estreito preto e cinza, nos quais os sinais têm predominância sobre as coisas. Nossa constante ambição, então, é restaurar a esse mundo seu brilho, sua cor, sua força provocativa, seu charme e, em uma palavra, suas possibilidades combinatórias imprevisíveis.
Não há mais quais sentimentos proibidos, mesmo que respondam por nomes: serenidade, alegria e prazer. E, se, ocasionalmente, nós nos deparemos com a ‘beleza’, como Stendhal, nós prometemos que ela será uma pungente promessa de felicidade.”6
Contemporaneamente, no entanto, o estilo Renoir/ Surrealismo em Plena Luz do Sol teve uma acolhida morna por parte do público e crítica. O agente de Magritte, Alexander Iolas, escreve ao artista em carta de novembro de 1948:
“As pessoas que gostam da sua pintura pré 1940 gostam de maneira unânime porque elas a acham mais poética e superior a esse 5 quadros [impressionistas] que eu retorno para você e eles estão muito interessados em adquirir as antigas… Eu também não estou pedindo para você copiar quadros antigos, mas apenas para não quebrar com aquela qualidade misteriosa e poética das suas obras antigas, que pela qualidade compacta delas era muito mais Magritte do que aquelas nas quais a técnica Renoiristica e as cores parecem ser fora de moda para todo mundo.”7

Localização
O Sonâmbulo foi dado de presente por Magritte para o seu amigo Louis Scutenaire. Poeta e escritor, Scutenaire e Magritte se conheciam desde de 1926, quando foram apresentados por Paul Nougé. Ao longos dos anos, Magritte ilustrou obras de Scutenaire enquanto o poeta escreveu sobre os quadros do artista e contribuiu o título de vários deles. Scutenaire e sua esposa, a escritora Irène Hamoir, também posaram como modelos para algumas obras de René Magritte, dentre elas A Gravitação Universal. O casal se tornou mecenas do pintor e passaram a colecionar seu trabalho.
Em 2020, O Sonâmbulo foi a leilão pela casa Christie’s, sendo arrematada por cerca de 1 milhão e 600 mil libras.8
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Referências
- SYLVESTER, D. René Magritte, Catalogue raisonné, vol. II, Oil Paintings and Objects 1931-1948, Antwerp, 1993, p. 341. ↩︎
- SYLVESTER, D. René Magritte, Catalogue raisonné, vol. II, Oil Paintings and Objects 1931-1948, Antwerp, 1993, p. 372. ↩︎
- ALLMER, Patricia. René Magritte. London: Reaktion Press. (2019), p. 160. ↩︎
- ALLMER, Patricia. René Magritte. London: Reaktion Press. (2019), p. 161. ↩︎
- VIAL, C.‘Ceci n’est pas René Magritte’, in Femme d’Aujourd’hui, July 6, 1966, pp. 22-24. ↩︎
- SYLVESTER, D. René Magritte, Catalogue raisonné, vol. II, Oil Paintings and Objects 1931-1948, Antwerp, 1993, p. 137. ↩︎
- ALLMER, Patricia. René Magritte. London: Reaktion Press. (2019), p. 159-160. ↩︎
- Nota sobre a obra site da Christie’s. ↩︎