Perspectiva: A Sacada de Manet de René Magritte

Perspectiva: A Sacada de Manet é um quadro de René Magritte feito em 1949. Um de seus quadros mais conhecidos, Perspectiva é uma releitura, mais ou menos sinistra e bem humorada, da obra A Sacada, do pintor francês Edouard Manet.

Ao longo dos anos, René Magritte trabalhou diversas vezes com o tema da morte, e mais especificamente o de caixões posando como se fossem modelos. Magritte também foi prolífico em referências a outros artistas, a livros e filósofos em suas pinturas, de modo que sua Sacada de Manet traz em si diferentes aspectos do estilo do pintor belga.

Obras como Perspectiva: A Sacada de Manet feitas por Magritte, podem ser encontradas encontradas em coleções particulares e instituições como o MoMA.

Quadros Perspectiva: A Sacada de Manet de René Magritte e A Sacada de Edouard Manet
Perspectiva: A Sacada de Manet de René Magritte. Fonte: Christie’s. A Sacada de Edouard Manet. Fonte: Musée D’orsay.

A Produção de Perspectiva de René Magritte

O tema da morte esteve presente em trabalhos ao longo de toda a carreira de René Magritte. Desde seu famoso A Ameaça Assassina, de 1927, o pintor belga representou cenas de morte diversas vezes. James Thrall Soby, escrevendo para o catálogo da exposição de René Magritte ocorrida em 1965 no MoMA, destaca que o artista costumava passear por um velho cemitério na cidade de Soignies quando jovem:

“Os monumentos de granito do cemitério e os caixões de madeira em suas criptas tiveram um papel recorrente na iconografia do artista.”1 Soby ainda aventa a possibilidade, algo “mais que possível”, de que Magritte tenha conhecido o quadro Enterro Precipitado de Antoine Wiertz de 1854, cujos ” caixões revirados de uma maneira fantástica” o teriam influenciado. 

Quadro Enterro Precipitado de Antoine Wiertz
O Enterro Precipitado de Antoine Wiertz (1854). Fonte: Museu Real de Belas Arte da Bélgica.

Sobre suas visitas a cemitérios, o próprio pintor afirmou em uma palestra: “Quando eu era criança, eu costumava brincar com uma garotinha em um velho cemitério da província. Nos costumávamos entrar nos mausoléus das famílias, quando conseguíamos levantar as pesadas portas de ferro, e depois voltar para a luz e encontrar um artista de Bruxelas trabalhando na imagem de um caminho muito pitoresco, onde colunas de pedra quebradas se espalhavam por folhas mortas.”2

A Sacada, é baseado em ao menos outras três pinturas: Madame Récamier de Jacques Louis David, feita em 1800 e pertencente ao Museu do Louvre, e outro retrato da mesma senhora Récamier de François Gérard feito dois anos depois e atualmente no Musée Carnavelet de Paris. Magritte fez seu Perspectiva: A Sacada de Manet em 1949.

No ano seguinte, fez outro trabalho praticamente igual, com o mesmo nome e dimensão, mas com pequenas diferenças nas alças dos caixões. Essa versão se encontra hoje no museu Van Hedendaagse Kunst, em Gante na Bélgica. Perspectiva Madame Récamier de Gérard e Perspectiva: Madame Récamier de David, feitas ambas em 1950, encontram-se em coleções privadas.

Quadros Madame Récamier de Jacques-Louis David e Madame Récamier de David feito por René Magritte
Madame Récamier de Jacques-Louis David. Fonte: wikipedia. Perspectiva: Madame Récamier de David de René Magritte. Fonte: National Gallery of Canada.

Sobre o processo de produção das pinturas, temos um raro testemunho do poeta e amigo de Magritte, Marcel Mariën, que narra os acontecimentos em torno do quadro antes mesmo dele ser terminado. Conforme o poeta, A Sacada dispõe de elementos de comicidade e humor, presentes em muitas das obras de Magritte. Segundo Mariën: 

Foi assim que as coisas aconteceram e, como eu verdadeira posso dizer, diante dos meus próprios olhos. Magritte começou com uma pequena pintura a guache com a visão frontal de um caixão instalado em uma poltrona. Eu me lembro bem que, quando Nougé e eu a vimos juntos pela primeira vez, nossa reação imediata foi começar a rir, fazendo assim com que o divertimento do próprio Magritte fosse despertado novamente, o qual havia necessariamente baixado desde que ele havia encontrado a ideia.

Porque o fato é (não o tipo de coisa que se diz!) que a imagem é cômica – riso e morte, como é bem sabido, sempre andaram de mãos juntas. 

Depois de meia hora, houve risadas ainda mais altas quando Nougé anunciou o título que ele havia pensado: Perspectiva ( tanto no sentido temporal quanto geométrico). Apenas algumas semanas mais tarde Magritte teve a ideia de aplicar sua descoberta a figuras famosas. Elas obviamente teriam que estar sentadas e facilmente identificáveis de um arranjo igualmente célebre.

Foi assim que – com a ajuda do humor – os dois Récamier surgiram, o de David primeiro com a variante do caixão dobrado, e então o de Gérard com a mesma posição feita em gauche. Enquanto isso, ele também usou A Sacada de Manet, e naquela imagem o novo caixão pareceu mais estranho ao ser ser acompanhado de outros três.3

Seu quadro Perspectiva: A Sacada de Manet não foi a única vez que René Magritte fez referência ao pintor francês. Naquelas mesma palestra de 1938, Magritte comentou as fortes criticas que sua arte e a de outros artistas costumava receber de seus contemporâneos:

“clamou-se pela destruição da Olimpia de Manet e os críticos o acusaram de despedaçar mulheres porque ele mostrava apenas a metade de cima de uma mulher em pé atrás de um bar, deixando a parte de baixo escondida.” 

Essa última mulher em pé atrás do bar se trata do famoso quadro Um bar em Folies-Bergère de 1882. A fala de Magritte, e sua referencia a dois retratos de mulheres sendo um deles um nu, pode ter levado em conta seu próprio nu composto de múltiplas partes chamado A Evidencia Eterna de 1930. De qualquer maneira, conforme escreve James Soby: “Pode ser um pouco forçado dizer que Magritte o fez como um tributo obliquo a Manet, mesmo assim a arte de Manet parece ter assombrado ele.”4 

Quadros A Evidencia Eterna de René Magritte feitos em 1930.
A Evidência Eterna de Magritte (1930). Fonte: Menil.

Interpretações de A Sacada de Manet de René Magritte

Uma das interpretações do quadro é mais literal: os personagens do quadro original são os mesmos daquele de Magritte, na própria época de Magritte: “corpos dentro de caixões.”5 O que confere mais uma camada de ironia ao quadro é fato de que, da mesma maneira que Magritte se apropriou e desenvolveu um quadro de Manet, o próprio Manet, em sua obra da sacada, se inspirou no quadro (Majas al balcón), feito por Goya entre 1800 e 1810. 

Quadro Majas na Sacada de Goya feito entre 1800 e 1810.
Majas na Sacada de Goya (1800-1810). Fonte: MeT

Manet usou seus amigos como modelos, entre eles, Berthe Morisot  sentada a frente e com olhar penetrante. O pintor parisiense, acredita-se, tenha recebido a inspiração para sua obra na ocasião de um passeio pelo cidade litorânea e destino badalado da época chamada Boulogne-sur-Mer. 

Manet causou comoção com sua obra, quando ela foi exposta no Salão de Paris de 1869, devido em grande medida ao uso das cores e contrastes, totalmente incomuns em sua época. Os modelos também levantaram polemica por contrariarem o costume de representação dominantes até então, com pessoas pálidas, absolutamente estáticas as quais não dão qualquer pista do que estão olhando. 

Essa impressão de morte do original de Goya pode ter sido o estopim para o quadro de Magritte, conforme a nota sobre a pintura no site da casa Christie’s: Eu sua releitura, Magritte se manteve fiel às poses de cada uma das figuras de Manet, destacando o já presente sentimento de ausência de vida ao retratar esses parisienses do século XIX literalmente como entidades mortas, exagerando assim o clima de afetação do original e transformando ele em uma macabra “sessão espirita de caixões.”

Perspectiva II de 1967. Fonte: Museu de Belas Artes de Ghent. Perspectiva, desenho feito a lápis. Fonte: MoMA.

Ao observar Perspectiva: A Sacada de Manet exposta na galeria de Alexandre Iolas em Paris no ano de 1964, o filósofo Michel Foucault pensou ter encontrado um evocação da morte na obra de Manet. Em 1966, Foucault escreveu para Magritte: 

Você me permitiria colocar uma questão a você? Sua versão de A Sacada na qual as figuras humanas são substituidas por caixões me interessa enormemente. A imagem de Manet – particularmente a janela abrindo para a escuridão – tem algo da “tumba aberta” nela, e eu achei que vi uma espécie de versão moderna de uma “ressurreição”: a progressiva emergência da tumba de um personagem divido em três ( cuja a primeira forma, masculina, mal se distingue das sombras, enquanto a ultima, a feminina é mostrada sentada placidamente na claridade da luz solar).

Eu gostaria muito de saber (e me desculpa se seu estou sendo indiscreto) o que te fez ver caixões onde Manet viu rostos brancos.6 

A reposta de Magritte foi evasiva como lhe era de costume: “Sua pergunta (sobre o meu quadro Perspectiva: A Sacada de Manet) pede por algo que ela já contem: o que me fez ver caixões onde Manet viu rostos brancos, é a imagem disposta no meu quadro no qual o arranjo de A Sacada era adequado para se colocar caixões. O “mecanismo” que operou nesse caso poderia se tornar o assunto para uma explicação erudita que vai além das minhas capacidades. Tal explicação seria valida, certeira até, mas ainda assim um mistério permaneceria…

Eu acho que deve ser dito que esses quadro intitulados Perspectivas mostram um significado outro além dos dois significados da palavra “Perspectiva”. Essa palavra e outras palavras tem um significado definido em um contexto, mas o contexto – você demonstrou isso melhor que qualquer um em As palavras e as Coisas – pode dizer que nada fica confuso, com exceção da mente que imagina um mundo imaginário.7

Recepção e crítica de A Sacada de Mané de René Magritte

Em uma entrevista com o pintor, o escritor e jornalista da história da arte Pierre Mazars questionou a intenção de Magritte por trás de seu A Sacada: “A Sacada significa que você está buscando destruir as pinturas clássicas?”.

A resposta de Magritte, como lhe era típico, não esclarece inequivocamente a questão e, ainda por cima, termina com outra pergunta: 

“De forma alguma. Eu busco meramente mostrar algo diferente daquelas pinturas, usá-las, e eu não sinto a necessidade de ridicularizar a morte, uma vez que o ridículo é um sentimento e, consequentemente, invisível. Com a pintura, que é visível, poderia retratar o invisível?”

Localização de Perspectiva: A Sacada de Manet de René Magritte

Originalmente, a tela pertenceu a Alexander Iolas, que a adquiriu de Magritte em 1949. Iolas foi um galerista e colecionador de obras de arte por trás do sucesso de Rene Magritte e Andy Warhol. Tendo passado por diversas coleções, o quadro foi leiloado pela casa Christie’s em 20220 sendo arrematado por quase 4 milhões de libras.

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Referências

  1. SOBY, James Trall. René Magritte, Museum of Modern Art, New York, 1965, p. 7.  ↩︎
  2. OLLINGER-ZINQUE, G. LEEN, F. eds., René Magritte 1898-1967, exh. cat., Brussels, 1998, p. 44. Na nota sobre a obra no site da casa de leilão Christie’s. ↩︎
  3. MARIËN, M. ‘Activité surréaliste’, In D. Sylvester, ed., René Magritte, Catalogue Raisonné, vol. III, Antwerp, 1993, p. 146. No site da casa de leilão Christie’s. ↩︎
  4. SOBY, James Trall. René Magritte, Museum of Modern Art, New York, 1965, p. 140. ↩︎
  5. Nota spbre o quadro no site da casa de leilão Christie’s. ↩︎
  6. FOUCAULT, Michel, Ceci n’est pas une pipe, deux lettres et quatre dessins de René Magritte, Montpellier, 1973, p. 146. ↩︎
  7. Carta de Magritte para Michel Foucault de 4 de junho de 1966. FOUCAULT, Michel .Ceci n’est pas une pipe, deux lettres et quatre dessins de René Magritte, Montpellier, 1973, p. 146-147. ↩︎
Data: 1949
Estilo: Surrealismo
Origem: Bélgica
Autor: René Magritte
Dimensão: 80 x 60 cm
Material: Óleo sobre tela
Localização Atual: Coleção particular

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