A Refeição do Lorde Castiçal de Leonora Carrington

A Refeição do Lorde Castiçal é um quadro da artista Leonora Carrington pintado em 1938

No verão de 1937, quando Leonora Carrington e Max Ernst iniciaram seu relacionamento apesar da grande diferença de idade e do fato do pintor alemão ser casado, o pai da jovem artista Harold Carrington não poderia ter ficado mais perturbado. Por anos ele, e em menor medida a própria esposa, havia batalhado com o gênio obstinado da filha que pouco se interessava por bailes e insistia nos estudos das artes plásticas.

Sua prima distante, Joanna Moorhead, nos dá conta na biografia que escreveu da artista parenta, que quando o contato de Harold em Londres, Serge Chermayeff, descobriu sua relação com o Ernst, não hesitou em chama-la de “rameira vulgar”. Segundo a biografia, Leonora não teria se doído muito com a ofensa e respondeu: “rameira vulgar ou não, é assim mesmo. O que você quer que eu faça, Serge?”.1 

Leonora e Serge fizeram então o que sentiram ser o certo: ela continuou com Ernst, como o faria por ainda dois anos, e ele informou como o pode o pai da moça o melhor que pode, talvez suprimindo as ofensas. A reação de Harold foi pouco surpreendente. Escandalizado e furioso, ele exigiu, por carta, que a filha retornasse a Hazelwood Hall, grande e luxuosa propriedade da família em Lancarshire, e desistisse do romance. Leonora Carrington não obedeceu dessa vez assim como já o tinha feito algumas vezes. O próximo passo do rico industrial seria mais metódico.

A Refeição do Lorde Castiçal de Leonora Carrington
A Refeição do Lord Candlestick (1938). Fonte: Gazette Drouot

Max Ernst se encontrava em solo inglês devido a sua exposição na Mayor Gallery. Parte do grupo surrealista, vanguardista e disruptivo, muitos de seus artistas sofreram com algumas reações negativas do publico. Para além de sua arte, Max Ernst era alemão, em uma época que os ânimos anti-germanicos reminiscentes da Primeira Guerra Mundial se arrefeciam cada dia mais desde 1933, ano da subida ao poder na Alemanha de um ex-combatente do primeiro conflito chamado Adolf Hitler. Com esse cenário, talvez não tenha sido difícil para Harold Carrington convencer a policia de que nem Max Ernst nem seus quadros deveriam passar mais um dia sequer na Inglaterra. A exposição foi fechada e um mandado de extradição expedido.2 

Londres ja não era mais um lugar seguro para Ernst. Por sorte, porém, seu amigo e também artista Roland Penrose tinha o esconderijo perfeito: Lambre Creek, perto de Falmouth, na Cornualha. E foi para lá que Ernst, Carrington, Roland e sua companheira da época Lee Miller, encontraram refugio.

As semanas na casa de campo seriam lembradas por todos como férias perfeitas e vários artistas passaram ao menos alguns dias ali, bebendo e se divertindo com o célebre fugitivo. Entre eles estavam o fotógrafo Man Ray, o poeta Joseph Bard e sua parceira Ady Fidelin, a pintora inglesa Eileen Agar, o escultor Henry Moore e sua esposa Irena, o marchand belga Edouard Mesens (amigo e um dos principais negociador de René Magritte).3

Com o passar dos dias, porém, tanto Max quanto Leonora sabiam os dias de férias estavam chegando ao fim e permanecer na Inglaterra não era uma opção. O casal decidiu por embarcar juntos para Paris. Para a jovem artista essa seria a chance de viver duas paixões: por Max e pela pintura. Mas antes disso, ela retornou para Hazelwood Hall com o intuito de encarar o próprio pai, informa-lo de sua decisão e partir. Joanna Moohead nos da conta que ambos estavam furiosos e descontrolados.

Harold Carrington terminou por dizer à filha que não a manteria financeiramente caso fosse embora viver com o pintor alemão. Que ela morreria pobre e indigente tentando ganhar a vida como artista. Em agosto de 1937, Leonora abandonou a casa paterna rumo a capital francesa. Apesar de ter vivido o suficiente para ver a própria obra ganhar admiradores e fama – além de ser negociada por vultuosas somas em leilões – as palavras do patriarca Carrington foram a verdade por muitos anos da vida da filha. Depois da partida, Leonora nunca mais viu o próprio pai.4 

A Refeição do Lorde Castiçal e seus símbolos

Em a Refeição do Lord Candlestick, Leonora talvez tenha tentado dar a ultima palavra na discussão com Harold. Talvez seja uma forma de externalizar o tipo de vida que levara sendo a filha de um rico negociante inglês: protocolos sociais, eventos, jantares, o luxo e ostentação que pouco tinham a ver com o que ela ambicionava para si. Feito em 1937 (ou 1938), a Refeição do Lord Candlestick é um retrato irônico e meio sinistro da alta sociedade inglesa da primeira metade do século XX.

Ao se centrar na mesa de jantar, ponto nevrálgico da família e convívio entre pares daquela classe, Leonora põem a mostra a tolice, feiura e hipocrisia muitas vezes mascaradas por sua família e sua casta. As cores escuras e neutras, os tons terrosos de toda a composição, deturpam o estilo sóbrio da aristocracia e da nobreza da época em uma atmosfera de delírio onírico. As figuras humanas sentadas e comendo parecem confortáveis com o triste banquete posto. Distraída enquanto conversam e comem, elas parecem afetadas, estúpidas e glutãs. 

A cor branca acinzentada as desumanizada ainda mais e lhes confere um aspecto fantasmagórico. Há um forte contraste entre elas e os empregados do outro lado da mesa, diminutos e vestidos excesso que demarca sua função. Um deles vai ao extremo de se tornar uma objeto e está parado como um apoio para o que parecer ser um prato feito de um monstro. 

Se concentrando nos aspectos feministas do quadro, Susan Aberth o chama de “ataque herético”:

Como o centro desse ataque herético estava o símbolo da mesa – como um altar, uma laboratório alquímico, como o lócus do Sabah da bruxa, e como uma porta para mundos alternativos que perigosamente se localizam latentes por debaixo do patriarcado“.5 

O ataque ao pai então se torna um ataque ao Pai, figura absoluta da ordem patriarcal e também do ordenamento judaico-cristão ocidental. Conforme a estudiosa de mulheres surrealistas, Whitney Chadwick, a Refeição do Lord Candlestick “não é apenas um pressagio das coisas que virão mas também um soco na autoridade paternal (o apelido de Leonora para o pai era Lord Castiçal).

Nesse trabalho ela dá um passo definitivo contra o Catolicismo que tanto empecilho tinha colocado a sua educação e criação. O altar cristão e o ritual da Eucaristia são transformados em um banquete canibal. A mesa tem uma semelhança impressionante com aquele localizada no Grande Hall da propriedade paterna de Crookhey Hall” e a pesquisadora continua “mas agora em vez de ser um sinal de riqueza e grandiosidade, ela serve como plataforma de sacrilégio”.6

A Refeição do Lord Castiçal ressoa fortemente com a personagem de A Dama Oval, conto de Leonora Carrington escrito em 1937. Nele, a protagonista está em pé de guerra com o pai e mais ou menos ironicamente entra numa pseudo greve de fome para feri-lo: “Eu não vou beber. Eu não vou comer. É um protesto contra o meu pai, aquele bastardo” e mais adiante “Eu não me importo. Enfim, me dê um pouco de chá, mas não diga nada a ninguém. Talvez eu pegue alguns bolinhos, mas seja lá o que você fizer, lembre-se de não dizer nada“.7

Uma vez longe da família, em Paris, Leonora mergulhou de cabeça na vida artística como um membro mais ou menos aceito do grupo surrealista. Na mesma época em que produziu A Refeição do Lorde Castiçal, ela também fez dois de seus quadros mais famosos: Autorretrato (Hospedaria do Cavalo Alvorada) e Retrato de Max Ernst, encarnações respectivamente de seu senso de liberdade recém adquirido e daquele que, mais que um companheiro, foi uma grande influencia para a artista nessa jornada.

O inicio da Segunda Guerra Mundial e a invasão da França pela Alemanha fariam com que, de certa forma, muitas das apreensões de Harold Carrington com relação ao futuro da própria filha se concretizassem: Leonora conheceu a insegurança, o perigo, a pobreza e a violência nos anos seguintes de uma maneira que apenas uma guerra pode fazer.

Seu destino a levou para fora da Europa, primeiro a uma curta temporada em Nova Iorque e depois em definitivo para a capital do México. Ali, ela se casou com o parceiro de Robert Capa, o também refugiado Chiqui Weisz. Os casal teve dois filhos. O casamento e vinda dos filhos talvez tenha feito Leonora Carrington refletir sobre maternidade e a relação entre pais e filhos. Mesmo nunca tendo voltado a conviver com a família de origem, seu estabelecimento em uma terra distante deve ter provocado ao menos uma certa saudade na pintora.

Seu primeiro filho, nascido em 1947, foi nomeado Harold Gabriel Weisz Carrington. 

Artigos Relacionados

Leonora Carrington

Autorretrato (Hospedaria do Cavalo Alvorada)de Leonora Carrington

Verão de Leonora Carrington

Artigos, teses e estudos sobre a vida e obra de Leonora Carrington

Referencias

  1. MOORHEAD, Joanna. Leonora Carrington: una vida surrealista. Tradução Vidal, Laura. Madrid:Turner, 2017. p. 52. ↩︎
  2. MOORHEAD, Joanna. Leonora Carrington: una vida surrealista. Tradução Vidal, Laura. Madrid:Turner, 2017. p. 54. ↩︎
  3. MOORHEAD, Joanna. Leonora Carrington: una vida surrealista. Tradução Vidal, Laura. Madrid:Turner, 2017. p. 56. ↩︎
  4. MOORHEAD, Joanna. Leonora Carrington: una vida surrealista. Tradução Vidal, Laura. Madrid:Turner, 2017. p. 60. ↩︎
  5. ABERTH, Susan L. The alchemical Kitchen: at Home with leonora Carrington. NIERIKA – Revista de Estudios de Arte. Celebrando a Leonora Carrington. ISSN-0000-000, N.1, Ano 1, Junho 2012, pp. 7-15. Aqui. p. 9. ↩︎
  6. ABERTH, Susan L. The alchemical Kitchen: at Home with leonora Carrington. NIERIKA – Revista de Estudios de Arte. Celebrando a Leonora Carrington. ISSN-0000-000, N.1, Ano 1, Junho 2012, pp. 7-15. Aqui. p. 9. ↩︎
  7. CARRINGTON, Leonora, The Complete Stories of Leonora Carrington with Introduction by Kathryn Davis. (St.Louis: Dorothy Project, 2017). p. 16. ↩︎
Data: 1938
Origem: Paris, França
Autor: Leonora Carrington
Dimensão: 46 x 61 cm
Material: Óleo sobre tela
Localização Atual: Coleção particular

Busque no portal urânia