Retrato de Guillaume Apollinaire é um quadro do pintor Giorgio de Chirico. Pintado em 1914, a obra não traz o retrato do poeta Apollinaire mas foi lhe dada como presente por de Chirico e, dessa forma, recebeu o título pelo qual é conhecida.
Exibindo elementos típicos do estilo de Giorgio de Chirico das décadas de 1910 e 1920, como a presença de referências à antiguidade clássica, Retrato de Guillaume Apollinaire faz parte do período metafísico do artista. Atualmente o quadro faz parte do acervo Musée National d’Art Modern de Paris.
A amizade de Giorgio de Chirico e Apollinaire
Giorgio de Chirico chegou em Paris em julho de 1911 e no ano seguinte exibiu três pinturas no Salão de Outono. Essa sua primeira exposição não chamou muita atenção do público, porém Guillaume Apollinaire e o jovem Pablo Picasso ficaram impressionados com a arte do italiano. Já no fim de 1912, ainda entusiasmado com os quadros de de Chirico, Apollinaire convenceu Paul Guillaume a incluir os trabalhos do pintor em sua galeria estreante.

O poeta francês permaneceria o principal apoiador de Giorgio de Chirico até sua morte, pela gripe espanhola, em 1918. Dois anos depois, escrevendo para o jornal Paris-Journal, Apollinaire afirmou: “Foi em 1912, que eu tive a oportunidade de dizer a alguns jovens pintores como Chagall, como G. de Chirico: ‘Continuem! Vocês tem um talento que chama atenção para vocês“.1
A amizade entre os artistas continuaria. Em janeiro de 1914, escrevendo para o francês, Giorgio de Chirico expressa seus sentimentos com relação ao apoio do amigo: “O interesse e a profunda compreensão que você tem pelo que eu faço me encoraja através de mil e um caminhos e me abre muitos horizontes.”2
Retrato de Guillaume Apollinaire, ou não
Após tal declaração de Apollinaire, de Chirico lhe convidou para o seu estúdio e ofereceu a obra como presente. Willard Bohn vê no ato mais do que gratidão e afirma: “Suspeita-se que o gesto também foi motivado pelo desejo de de Chirico pelo apoio contínuo de Apollinaire”3
De Chirico não apenas relembrou as palavras do poeta em seu artigo Les Soirées de Paris como ofereceu outras pinturas para o francês. Em uma correspondência de 14 de julho de 1914, entre ambos, o italiano escreveu: ” Em troca de [sic] quadros que eu te dei e que eu ficarei muito orgulhoso de ver na sua casa eu te pedirei que me dedique uma poesia que, como você me disse ontem, você vai publicar no volume seguinte“4

Guillaume acabara de terminar uma coletânea de poemas de modo que só atenderia ao pedido do colega quatro anos depois, com o poema dedicado ao italiano Oceano da Terra.5
Pierre Roy, pintor francês que conhecia tanto Apollinaire quanto de Chirico, confidenciou a Pierre Marcel Adema que o Retrato de Guillaume Apollinaire estava parado, junto com outras pinturas, no estúdio do pintor italiano e que o poeta foi encorajado a pegar qualquer obra:
“Você sabe que o quadro de Giorgio de Chirico anunciado como “retrato do autor” […] não era seu retrato quando ele foi pintado? Chirico, no seu período que Guillaume chamava de ‘metafisico”, pintava quadros cujo tema era o poeta imaginário, às vezes portando óculos escuros. Foi um desses que Apollinaire escolheu […]“6
No ano anterior, Giorgio de Chirico já havia presenteado Apollinaire com A Grande Torre após o poeta escrever uma crítica positiva de seu trabalho. O mesmo aconteceu com Maurice Raynal e seu artigo elogioso no Gilbias: de Chirico o convidou e disse para que escolhesse uma pintura.7
Elementos de Retrato de Guillaume Apollinaire
A figura que talvez primeiro chame a atenção do observador do quadro é o busto em primeiro plano e com óculos escuros. Em artigo, Willard Bohn reconhece nele a figura do deus Apolo, divindade ligada às artes, poesia e música. Apolo aparece de maneira recorrente nas obras de Chirico. Leitor de Nietzsche, de Chirico desenvolveria por meio dos personagens de seus quadros (figuras históricas, deuses) “os princípios criativos gêmeos” dissecados em O Nascimento da Tragédia do filósofo alemão.
Nas palavras de Bohn: “Aqueles que derivam sua inspiração do sonho incorporam o impulso Apoloniano. Aqueles cuja inspiração se parece com a embriaguez extasiada incorporam o impulso Dionisíaco. Em contraste com o primeiro processo, o qual é essencialmente racional, o segundo é irracional e inconsciente. Esses dois processos governam toda a produção artística de Chirico”8
Para o pesquisador, os óculos do busto do deus marcariam sua deficiência visual que, simultaneamente, conforme a tradição grega, significam uma maior percepção do não visual, daquilo que vai além da realidade física e atinge a realidade metafísica:
“Apesar dos óculos escuros, os quais escondem (mas também enfatizam) sua cegueira, a figura parece dotada de um olhar penetrante. De acordo com uma tradição antiga que remonta a Homero, poetas cegos eram com frequência dotados de um tipo especial de visão”9
Bohn prossegue e passa a analisar a figura de perfil, no fundo do quadro. Se baseando não apenas na nacionalidade de de Chirico – apesar de nascido na Grécias, ambos os pais de Giorgio de Chirico eram italianos – bem como nas leituras e locais em que se hospedou, o pesquisador aponta o poeta Dante Alighieri como possível identidade da figura. Mais especificamente, sua máscara funerária. Dante seria assim uma representação – talvez a representação – do poeta de Apolo.
No entanto, o perfil do fundo passou para a história como sendo do próprio Guillaume Apollinaire. Tanto de Chirico como seu irmão Alberto Savino, mantiveram a versão de que o desenho se trata do poeta francês. Assim, quando Apollinaire foi ferido na cabeça durante a Primeira Guerra Mundial, começou-se a falar que o quadro previra o ocorrido.
Retrato de Guillaume Apollinaire: retrato premonitório?
Anos depois da produção do retrato, em 1916, Guillaume Apollinaire era um entre tantos combatentes da Primeira Guerra Mundial. Então com 36 anos, Apollinaire foi feriado em combate, na cabeça. O poeta então passou por uma cirurgia e obteve a dispensa do fronte. Porém, em 1918, enfraquecido pelo ferimento, Guillaume Apollinaire acabou morrendo durante a epidemia de Gripe Espanhola.

Willard Bohn aponta que o tanto Apollinaire quanto os irmãos pintores Giorgio e Savino estiveram por trás da leitura profético do Retrato de Guillaume Apollinaire: “Durante a guerra, os três amigos se envolveram em uma mistificação parecida depois que o poeta sofreu um ferimento na cabeça no fronte.”10
Sua proximidade com de Chirico, que foi tido por André Breton e seus colegas surrealistas como um surrealista avant-lettre, bem como sua obra poética que em tema e forma desobedecia os preceitos da época, fez de Guillaume Apollinaire um nome respeitado e considerado dentro do surrealismo.
Seu retrato é apenas um em uma lista de eventos e obras alardeadas como premonitórias pelos surrealistas. O que mais se destaca na lista é o chamado Incidente Brauner, no qual o pintor romeno Victor Brauner perdeu um dos olhos durante uma briga de bêbados envolvendo os pintores espanhóis Óscar Domínguez, Esteban Francês e Remedios Varo.
Vidente ou não, Brauner havia pintado um retrato, anos antes, em que aparece com um dos olhos “anucleado“. A lista também conta com o quadro Sonho e Premonição, da pintora mexicana María Izquierdo, o qual seria previsão de seu(s) futuro(s) derrames cerebrais e morte.
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Bibliografia
BOHN, Willard. Giorgio de Chirico’s ‘Portrait of Guillaume Apollinaire’ of 1914. The Burlington Magazine, Nov., 2005, Vol. 147, No. 1232, Italian Art (Nov., 2005), pp. 751-754. Disponível no Jstor.
BOHN, Willard. Giorgio de Chirico, Apollinaire and Metaphysical Portraiture. METAPHYSICAL ART 2013|N° 11/13. Disponível aqui.
Nota biográfica de Guillaume Apollinaire no site da enciclopédia britânica.
Texto de Jonathan Jones sobre a pintura publicado no jornal The Guardian
Referências
- BOHN, Willard. Giorgio de Chirico, Apollinaire and Metaphysical Portraiture. METAPHYSICAL ART 2013|N° 11/13. p. 67. ↩︎
- BOHN, Willard. Giorgio de Chirico, Apollinaire and Metaphysical Portraiture. METAPHYSICAL ART 2013|N° 11/13. p. 67. ↩︎
- BOHN, Willard. Giorgio de Chirico’s ‘Portrait of Guillaume Apollinaire’ of 1914. The Burlington Magazine, Nov., 2005, Vol. 147, No. 1232, Italian Art (Nov., 2005), pp. 751-754. p. 751. ↩︎
- BOHN, Willard. Giorgio de Chirico’s ‘Portrait of Guillaume Apollinaire’ of 1914. The Burlington Magazine, Nov., 2005, Vol. 147, No. 1232, Italian Art (Nov., 2005), pp. 751-754. p. 751. ↩︎
- BOHN, Willard. Giorgio de Chirico, Apollinaire and Metaphysical Portraiture. METAPHYSICAL ART 2013|N° 11/13. p. 67. ↩︎
- BOHN, Willard. Giorgio de Chirico’s ‘Portrait of Guillaume Apollinaire’ of 1914. The Burlington Magazine, Nov., 2005, Vol. 147, No. 1232, Italian Art (Nov., 2005), pp. 751-754. p. 752. ↩︎
- BOHN, Willard. Giorgio de Chirico’s ‘Portrait of Guillaume Apollinaire’ of 1914. The Burlington Magazine, Nov., 2005, Vol. 147, No. 1232, Italian Art (Nov., 2005), pp. 751-754. p. 751. ↩︎
- BOHN, Willard. Giorgio de Chirico, Apollinaire and Metaphysical Portraiture. METAPHYSICAL ART 2013|N° 11/13. p. 70. ↩︎
- BOHN, Willard. Giorgio de Chirico, Apollinaire and Metaphysical Portraiture. METAPHYSICAL ART 2013|N° 11/13. p. 73. ↩︎
- BOHN, Willard. Giorgio de Chirico, Apollinaire and Metaphysical Portraiture. METAPHYSICAL ART 2013|N° 11/13. p. 68. ↩︎