San La Muerte

San la Muerte é um santo popular cultuado na região sul da América do Sul, especialmente na Argentina (em Corrientes, Missiones e outras partes). Usualmente ele é representado como um esqueleto trajado com hábito monástico e uma foice ou bastão. Atualmente, San la Muerte possui o status de um santo/entidade para centenas de fiéis, com histórias de origem de grande diversidade.

No passado, porém, San la Muerte se restringia à figura do amuleto com esse nome, feito de materiais que podem ser ossos humanos, cuja função primeira é a proteção física do fiel que o porta. Nos dias de hoje, San la Muerte se refere tanto ao santo quanto ao seu amuleto e seu culto atrai diversos devotos com as mais diversas necessidades e pedidos.

San la Muerte, por outro lado, não é um santo reconhecido pela Igreja Católica e a devoção a ele, por essa razão, é alvo de censura por parte de alguns setores da população e da igreja.


Imagem de San La Muerte
Imagem de San La Muerte com as iniciais do Santo impressas na coroa. Fonte: radiodos.

San La Muerte: de amuleto a múltiplas histórias de origem

A figura de San La Muerte, ao contrário de outras como Gauchito Gil e San Pascualito, não possui uma história de origem que seja predominante. Assim, seu surgimento bem como o princípio de seu culto são contados por uma série de histórias diferentes. Frank Graziano elenca algumas delas em seu livro Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America.

Diz-se que na isolada cidade de Esteros de Ibera, cerca de 150 anos atrás, vivia um xamã muito conhecido por seus poderes de cura. O homem se ocupava em grande medida dos leprosos que viviam encarcerados em uma prisão, lhes trazendo água e sustento. Segundo essa versão da lenda, o homem era um frade Franciscano (ou Jesuíta) que havia permanecido na cidade apesar da expulsão das ordens religiosas. 

Um dia, alguns padres católicos teriam retornado a Esteros de modo a recuperar o controle do lugar. Ao ver o frade cuidando dos doentes, os padres mandaram prendê-lo junto com os acometidos pela lepra. O caridoso homem teria aceitado sua punição sem questionamentos. Ali, ele se recusou a comer e ficou imóvel, em pé, usando apenas um bastão para se apoiar. Apenas muito tempo depois alguém se deu conta de que ele havia falecido, e seu esqueleto, ainda vestido com a túnica escura, foi o que encontraram.1 Essa versão, em certa medida, é a dominante atualmente.2

Outra versão dá conta de como San La Muerte fora um rei benevolente e dedicado à caridade. Até que em determinado momento, seu reino foi invadido e ele preso, tendo tido seu corpo acorrentado ao próprio trono onde o monarca morreu e se esvaiu até se tornar um esqueleto.3 Alguns acreditam que a entidade tenha sido aquela apontada por Deus para o recolhimento da alma daqueles cuja hora de partir se aproxima4 enquanto outros crêem que San la Muerte seja um dos cavaleiros do apocalipse.5

Tais narrativas de origem, porém, não revelam o fato de que San La Muerte inicialmente não era uma entidade em si mas um amuleto. Frank Graziano coletou uma serie de testemunhos e falas de fiéis que carregam a figura de San La Muerte junto de si, comumente atadas a um cordão e penduradas no pescoço. Para essas pessoas, o santo lhes confere proteção não apenas espiritual mas sobretudo física, tornando seus corpos invulneráveis.6

Os amuletos de San la Muerte possuem uma tradição própria. Segundo a crença, devem ser feitos a partir de balas de arma de fogo (de preferência retiradas de dentro de alguém falecido), madeira ( que originalmente compunha alguma cruz de cemitério ou do tipo pau santo ou mesmo ossos humanos. Os pedaços de tais materiais devem então ser talhados no formato de um esqueleto para se ter um amuleto de San la Muerte.7 Para Graziano, a preferência por tais materiais para a confecção de amuletos “reitera um padrão dominante: o da morte transformada em protetora da vida”.8

No passado, acreditava-se que o culto de San La Muerte tivesse como principal objetivo uma violência interpessoal, de modo que os devotos do santo caveira recorriam  a ele com pedidos de vingança e de morte contra inimigos. Com o passar do tempo, porém, a entidade passou a ser requisitada para diversos fins como saúde, emprego e mesmo na procura de objetos perdidos.9

Frank Graziano ainda se refere ao passado colonial Argentino – e de toda a América Latina  – mais especificamente à influência católica e da cultura europeia como contextos propícios para o aparecimento do culto do santo esqueleto. Para Graziano, San La Muerte deriva, ao menos em parte, das representações esqueléticas presentes nas famosas Danças da Morte e também na figura do ceifador.10 

Procissão a San La Muerte na Argentina.
Procissão a San La Muerte. Fonte: FRIGERIO (2021).

Do lado das populações indígenas e seus sistemas de crença, Frank Graziano cita a figura de alguns xamãs indígenas que teriam se tornado esqueletos após longos períodos sentados em concentração.11

Esse contexto cultural em comum teria contribuído para a origem de outras entidades esqueleto cultuadas em todo o cone sul tais como San Esqueleto no Paraguai e a Santa Muerte no México.12  Lembramos ainda que na região sul do México e parte da Guatemala existe outro santo com essa mesma qualidade esquelética: San Pascualito

Devoção a San La Muerte: nomes, seus locais, atributos e maneiras de culto

Assim como sua congênere mexicana, San La Muerte tem uma série de diferentes nomes: Nuestro señor de la buena muerte ou El señor de la Paciencia13, são alguns nomes que San La Muerte pode ter.14

Seu culto se concentra na região sul da América do Sul e em especial na Argentina, com nas regiões de Chaco, Santa Fé, Grand Buenos Aires e Corrientes como principais localidades a concentrar devotos. 15

San La Muerte pode ser representado de duas maneira principais: como um esqueleto que porta uma foice – o qual costuma ser chamado de Señor de la Buena Muerte ou San Esqueleto – ou como um esqueleto, usualmente com uma coroa na cabeça, sentado, que costuma ser chamado San Justo, San Bernardo ou San Paciencia.16

José Miranda Borelli, citado por Alejandro Figuerio, afirma que, ao menos na década de 1970, os devotos de San La Muerte mantinham o autor ao santo mais ou menos secreto: “San La Muerte fica localizado no lugar mais obscuro da casa, onde nem todas as pessoas chegam, o lugar secreto, o lugar sagrado, o lugar com carga.”17

De maneira semelhante a São Longino, os fiéis de San La Muerte requisitam seu auxílio para achar objetos perdidos ou roubados. As imagens do santo são empregadas de várias maneiras com esse fim. Algumas pessoas, por exemplo, penduram o santo de cabeça para baixo e atado a uma corda. Elas então torcem a corda em movimentos circulares e a soltam.

Imagens de San La Muerte feitos respectivamente de madeira, osso humano e projetil.
Imagens de San La Muerte feitos respectivamente de madeira, osso humano e bala de arma de fogo. Fonte: FRIGERIO (2021).

A imagem começa a girar e quando para, conforme acredita-se, ela sempre está olhando na direção do objeto perdido. Em agradecimento, o fiel deve queimar uma vela para o santo, estando ela também de ponta cabeça.18 

A figura pode ainda ser enterrada em uma pilha de sujeira perto de um altar, ser virado para ficar de frente a uma parede até que conceda um milagre. Graziano explica como as imagen de de San La Muerte costumam já ser talhadas com a cabeça achatada de modo a facilitar sua inversão na hora de se pedir um milagre.19 O santo que é eficaz em garantir pedidos, conforme se acredita, também o é em se vingar caso não receba o agradecimento devido: 

” O consenso geral é que a devoção deve ser levada muito a sério, porque San La Muerte dá mas também tira. Milagres que não são devidamente agradecidos resultam em seu oposto – um retorno à situação pré-milagre – com juros: suas plantações não crescem, alguém de sua família morre, sua casa pega fogo. San La Muerte é uma arma de autodefesa perigosa que machuca àqueles que não a usam adequadamente.”20

Quando portada por seus devotos como amuleto, a figura de San la Muerte deve ser feita, preferivelmente com ossos humanos, e talhada por um prisioneiro ou pessoa indígena. Caso a pessoa indígena seja um xamã, o amuleto é visto como ainda mais poderoso. Após o talhe, o amuleto deve ser então “ativado” espiritualmente, e para tanto, ele deve ser abençoado (chamado “batizado”) por um padre católico.21

As tradições são diversas. Acredita-se que 7 padres diferentes devem abençoar a imagem em 7 igrejas diferentes em 7 sextas-feiras. Claro que a grande maioria dos padres não abençoaria a imagem de uma caveira, de modo que os fiéis de San la muerte escondem o amuleto dentro de outros santos e então pedem a benção.22

Alguns ainda praticam a inserção de pequenas figuras de San La Muerte em seus corpos. Após um pequeno corte, a pessoa responsável por talhar a imagenzinha a insere, usualmente, na região do peito ou braços do fiel. Acredita-se que essa operação torne o devoto imune à violência de armas. Acredita-se que caso alguém portando o pequeno amuleto inserido em si se encontre mortalmente doente ou ferido, San La Muerte, por seus poderes, prolongará a vida de seu protegido, mesmo que em agonia. 

Conforme a crença, um outro santo popular sul-americano, chamado Gauchito Gil, era portador de um amuleto de San La Muerte. Quando de sua morte, Gauchito Gil, que foi, crê-se, executado injustamente, teria pedido para que antes da execução tirassem-lhe o santinho, o que ocorreu.23

Cesar Bondar e Elena Krautstofl apontam para o fato de que muitos adoradores de San La Muerte estarem, nos últimos anos, se tatuando com a imagem do santo em vez de apelarem para as inserções. 24

San La Muerte na Contemporaneidade

Em artigo no qual analisa matérias jornalísticas, Juan Fidanza explica como o culto a San La Muerte é percebido como uma ameaça por grandes estratos da população argentina e tratado de maneira pejorativa na imprensa. Os fiéis do culto são com frequência alvo de estigmatização. Tal atitude, conforme o pesquisador explica, não se restringe aos meios de comunicação. Na novela  Malparida dos anos de 2010 e 2011, por exemplo, a personagem da avó da vilã é mostrada como crente de San La Muerte.25 

O mesmo tratamento é dispensado a outros santos populares latino-americanos como A Santa Muerte e San Pascualito – que, como afirmamos, compartilham a forma de esqueleto com San La Muerte – e também Niño Fidencio. 

Bibliografia

Bondar, C. I.  Krautstofl, E. M. – Esbozo sobre el culto a San La Muerte en el Nordeste argentino. Rev. urug. antropología etnografía, ISSN 2393-6886, 2020, Año V – Nº 1:37–54. Disponível em: https://ri.conicet.gov.ar/handle/11336/143774

CALZATO, Walter Alberto. Escatología y dimensión social. El caso de San La Muerte (Argentina). En: Gazeta de Antropología, Nº 20, 2004, Artículo 27. Disponivel em: https://digibug.ugr.es/handle/10481/7278

CALZATO, Walter Alberto San La Muerte (Argentina). Devoción y Existencia, Entre los Dioses y lo Abandono. Revista LiminaR. Estudios sociales y humanisticos, año 6, vol. VI, núm. 1, junio de 2008, Tuxtla Gutiérrez, Chiapas. ISSN: 1665-8027. Disponível em: https://liminar.cesmeca.mx/index.php/r1/article/view/264/245

FIDANZA,Juan López. Sensación de inseguridad: la cobertura de la devoción a San La Muerte en los medios de prensa escrita, «Sociedad y Religión», 44, pp. 90-123, 2015. Disponível em: https://repositorio.uca.edu.ar/bitstream/123456789/14961/1/sensacion-inseguridad-cobertura.pdf

FRIGERIO, Alejandro. San La Muerte, el monge compasivo: mitopoesis y acomodación en una devoción popular estigmatizada. Religioni et società: XXXVI, 99, 2021. p. 42-53. Disponível em: https://repositorio.uca.edu.ar/handle/123456789/12542

GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.

ROLLAND, Dominique. En Argentine, des saints au bord des chemins: Difunta Correa, Gauchito Gil et San La Muerte. L’autre, Cliniques, Cultures et Sociétés, 2012, Volume 13, Nº 1, pp. 51-50. Disponível aqui.

Referências

  1. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 77. ↩︎
  2. FRIGERIO, Alejandro. San La Muerte, el monge compasivo: mitopoesis y acomodación en una devoción popular estigmatizada. Religioni et società: XXXVI, 99, 2021. p. 42-53. ↩︎
  3. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 83. ↩︎
  4. CALZATO, Walter Alberto. Escatología y dimensión social. El caso de San La Muerte (Argentina). En: Gazeta de Antropología, Nº 20, 2004, Artículo 27. p. 5. ↩︎
  5. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 83. ↩︎
  6. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 79. ↩︎
  7. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 89. ↩︎
  8. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 79. ↩︎
  9. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 79. ↩︎
  10. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 78. ↩︎
  11. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 102. ↩︎
  12. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 78. ↩︎
  13. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 58 ↩︎
  14. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 78. ↩︎
  15. CALZATO, Walter Alberto San La Muerte (Argentina). Devoción y Existencia, Entre los Dioses y lo Abandono. Revista LiminaR. Estudios sociales y humanisticos, año 6, vol. VI, núm. 1, junio de 2008, Tuxtla Gutiérrez, Chiapas. ISSN: 1665-8027. p. 29. ↩︎
  16. CALZATO, Walter Alberto San La Muerte (Argentina). Devoción y Existencia, Entre los Dioses y lo Abandono. Revista LiminaR. Estudios sociales y humanisticos, año 6, vol. VI, núm. 1, junio de 2008, Tuxtla Gutiérrez, Chiapas. ISSN: 1665-8027.  ↩︎
  17. BORELLI, José Miranda.  Un rasgo indicador de la cultura del nordeste. San la Muerte, «Suplemento Antropológico», 12, 1-2, pp. 45-148, 1977. p. 69 apud FRIGERIO, Alejandro. San La Muerte, el monge compasivo: mitopoesis y acomodación en una devoción popular estigmatizada. Religioni et società: XXXVI, 99, 2021. p. 44. ↩︎
  18. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 80. ↩︎
  19. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 81. ↩︎
  20. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 81. ↩︎
  21. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 91. ↩︎
  22. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 93/94. ↩︎
  23. GRAZIANO, Frank. Cultures of Devotion: Folk Saints of Spanish America. Oxford University Press, 2006.p. 95. ↩︎
  24. Bondar, C. I.  Krautstofl, E. M. – Esbozo sobre el culto a San La Muerte en el Nordeste argentino. Rev. urug. antropología etnografía, ISSN 2393-6886, 2020, Año V – Nº 1:37–54. p. 47. ↩︎
  25. FIDANZA,Juan López. Sensación de inseguridad: la cobertura de la devoción a San La Muerte en los medios de prensa escrita, «Sociedad y Religión», 44, pp. 90-123, 2015. p. 103. ↩︎
Origem: América do Sul, especialmente Argentina

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