Sherazade de René Magritte

Sherazade é um quadro pintado por Magritte em 1947. Ao longo da segunda metade dos anos 1940, René produziu algumas pinturas, as quais denominou Sherazade, a contadora de história das Mil e Uma Noites. Nesse quadro especificamente, a personagem aparece com uma profusão de olhos cercados por arcos compostos por pérolas e também uma boca. 

Sherazade foi produzida quando Magritte começou a reler a história de Mil e Uma Noites e, apesar de muito diferente de trabalhos anteriores do artista, traz elementos típicos de seu estilo, como os questionamentos em torno da visão e da representação. Como era de hábito do artista, Sherazade se transformou em um tema repetido em uma série de outras pinturas. Magritte, como se sabe, costuma produzir quadros, com maiores ou menores variações, sob o mesmo título. 

Pintura Sherazade de René Magritte
Sherazade, 1947. Fonte: Sotheby’s

A produção de Sherazade

Em carta para o amigo e poeta Marcel Mariën, René Magritte dá conta de que estava lendo a famosa coletânea de histórias As Mil e Uma Noites: “Eu comecei a reler as Mil e uma Noites com prazer, será que ele vai se manter?”1 Ao que tudo indica, o interesse de fato se manteve, já que logo após a leitura Magritte iniciou uma série de pinturas com as mesmas características da presente Sherazade: um par de olhos e uma boca rodeados por aros de pérolas, colocados em diferentes contextos. 

A pintura traz o nome da personagem Sherazade. Após se casar com o sultão Shahryar, a jovem Sherazade sabe o destino que lhe aguarda: ser morta pelo marido na noite de núpcias, uma vez que Shahryar temia ser traído como sua primeira esposa o fez.

Para evitar tal destino, Sherazade, então, cativa seu marido contando uma história diferente por noite e consegue manter o interesse do sultão e, por consequência, a própria vida. Segundo o próprio René Magritte, o rosto envolto em pérolas de fato é a Sherazade do título.2 Magritte fez ao menos 3 versões diferentes de Sherazade, todas com o mesmo título e trazendo o par de olhos, as pérolas e a boca. A presente pintura foi dada de presente à Madame Rosseels, vizinha de Magritte na rua Esseghem, Bruxelas.3

Uma série de outras Sherazades foram feitas em guaches, já na década de 1950. Algumas delas compuseram a coleção de Barnet Hodes, um advogado de Chicago e apaixonado pelo surrealismo. 

Sherazade do pintor René Magritte que se encontra no Museu Real de Belas Artes da Bélgica
Sherazade, 1948. Acervo do Museu Real de Belas Artes da Bélgica. Fonte: Museu Real

Para além de procurarem obter ao menos uma obra de cada um dos membros do grupo surrealista, ele e sua esposa Eleanor embarcaram em um projeto chamado “A Parede Magritte”, no qual o casal passou adquirir obras de René Magritte o suficiente para cobrir uma parede inteira do apartamento em que moravam. Eles encomendaram ao menos 4 guaches ao pintor belga, um deles com o motivo de Sherazade.4

Sherazade e o estilo de René Magritte 

O par de olhos presente nesse quadro são uma escolha de Magritte pelo tema da visão, a qual se faria presente em uma série de outras obras suas, anteriores e posteriores. Frequentemente ocupado com o tema da representação, das imagens e da realidade. Sua obra mais famosa, A Traição das Imagens, feita quase 20 anos antes, trazia a imagem de um cachimbo junto da frase “isso não é um cachimbo”. O objetivo do artista, ali, era claro: existe uma grande diferença entre a representação do objeto e o próprio objeto, nossos olhos e sua percepção, não são absolutos. 

Analisando a obra de René Magritte dentro do contexto surrealista, Christa Nemnom se debruça sobre a obra O Mundo Poético II, a qual compartilha com Sherazade, a representação do olho. Em O Mundo Poético II, a pesquisadora afirma alguns objetivos de Magritte que podem, em alguma medida, se aplicar aos quadros Sherazade: “Magritte lança dúvida sobre a arte da imitação e o processo assimilativo da percepção, se voltando unicamente, assim, em direção ao significado metafísico.5

Sherazade guache feito pelo pintor René Magritte em 1956.
Sherazade, 1956. Guache originalmente pertenceu ao casal Hodes. Fonte: Sotheby’s

Outro elemento presente neste Sherazade e que é muito significativo da obra de Magritte é a cortina. São várias as pinturas de Magritte que trazem cortinas ladeando ambos ou um dos lados da tela: O Mundo Poético (em suas versões), O Domínio de Arnheim (em ao menos duas de suas versões), Cinema Azul, A Gota d’Água, O Mundo das Imagens são apenas alguns exemplos. As cortinas “simultaneamente convidam o observador a entrar no mundo da pintura e também fecham esse mundo.” Elas funcionam como moldura, um dispositivo que “questiona a natureza da realidade e encerram em si a história”.6

No presente exemplar de Sherazade, a cortina traz ainda mais uma característica de Magritte que o diferencia de outras versões: a maneira como o pintor escolheu retratá-la. Se observamos mais atentamente, a cortina vermelha aqui foi feita com pinceladas marcadas, em tons de rosa e branco, os quais iluminam o objeto e harmonizam com todo o restante da obra. Esses elementos podem estar relacionados ao chamado período solar de Magritte.

Durante a primeira metade da década de 1940, com a explosão da Segunda Guerra Mondial e ocupação nazista da Bélgica, René Magritte desenvolveu um novo estilo de pintura que receberia o nome de Le Surréalisme en plein soleil, Surrealismo em Pleno Sol, nome do manifesto que Magritte escreveria sobre seu novo estilo em outubro de 1946.

Para além do próprio Magritte, outros artistas assinaram o manifesto, entre eles Nougé, Mariën, Scutenaire. Colorido, literalmente iluminado e emprestando características impressionistas como a de Renoir, o Surrealismo em Pleno Sol era como um antídoto aos tempos de guerra e morte. Conforme podemos ler em carta de Magritte a André Breton, de 25 de Junho de 1946:

Opondo-se ao pessimismo geral, eu estabeleço a busca por alegria, por prazer. Eu sinto que cabe a nós, que temos maior noção de como os sentimentos são inventados, tornar alegria e prazer, os quais são tão ordinários e longe de nosso alcance, acessíveis a todos nós.”7

Localização

A pintura Sherazade foi leiloada para casa Christies em outubro de 2024. Ela foi arrematada por quase 900.000 libras. 

Bibliografia

ALLMER, Patricia. René Magritte. London: Reaktion Press. (2019). 

David Sylvester (ed.), Sarah Whitfield & Michael Raeburn, René Magritte. Catalogue Raisonné, London, 1994, vol. IV, no. 1412, illustrated.

NEMNOM, Christa. Losing Sight to Gain Vision: The Eye in European Surrealist Painting. Concordia University Montreal, Quebec, Canada. 2021.

Referências

  1.  D. Sylvester, S. Whitfield, René Magritte, Catalogue raisonné, vol. II, Oil paintings and objects, 1931-1948, Antwerp, 1993, p. 374). Citado na nota sobre o quadro no site da casa de leilão Christie’s↩︎
  2. David Sylvester (ed.), Sarah Whitfield & Michael Raeburn, René Magritte. Catalogue Raisonné, London, 1994, vol. IV, no. 1412, illustrated. p. 387 citado no ensaio sobre outra versão de Sherazade leiloada pela casa Sotheby’s↩︎
  3. Nota sobre o quadro no site da Christie’s↩︎
  4. Nota sobre o guache Sherazade originalmente pertencente a Barnet e Eleanor Cramer Hodes no site da Sotheby’s ↩︎
  5. NEMNOM, Christa. Losing Sight to Gain Vision: The Eye in European Surrealist Painting. Concordia University Montreal, Quebec, Canada. 2021. p.48 ↩︎
  6. Nota sobre o quadro no site da Christie’s↩︎
  7. ALLMER, Patricia. René Magritte. London: Reaktion Press. (2019). p. 161. ↩︎
Data: 1947
Origem: Bélgica
Autor: René Magritte
Dimensão: 12.8 x 16.7 cm
Material: Guache sobre papel
Localização Atual: Coleção particular

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