Victor Brauner foi um pintor francês de origem romena que compôs o grupo surrealista. Amigo de André Breton e Yves Tanguy, Brauner participou de uma série de exposições ao lado dos surrealistas. Sua arte privilegia temas ligados ao esoterismo, mística judaica e espiritualidade. Dois quadros seus fazem parte do acervo do MASP.
Juventude
Victor Brauner (nascido em 15 de junho de 1903 em Neamt Piatra) foi um artista surrealista. Seu irmão Théodore Brauner também participou do mesmo movimento, porém como fotógrafo. Foi no seio familiar que Victor Brauner teve seus primeiros contatos com a religião espírita que teria influência em seu trabalho durante toda sua carreira. Acredita-se que ainda criança Brauner tenha participado, acompanhado dos pais, de sessões ocultistas e considerado por alguns dos membros de tais encontros como um médium em potencial.
Victor Brauner viveu na Romênia com sua família por toda sua infância. Em 1913, eles se mudaram para Hamburgo e, mais tarde, naquele mesmo ano, para Vienna. No ano seguinte, Brauner iniciou seus estudos na escola de belas arte de Bucareste, onde permaneceu de 1919 a 1922.
Da instituição, Victor Brauner foi expulso por “mau comportamento”: na verdade, o pintor era membro engajado na luta contra grupos de extrema direita romanos da época como a Liga da Defesa Cristã Nacional. Em 1924, ele participou da Primeira Exposição Internacional de Arte Plástica Moderna na Romênia ao lado de nomes da vida artística do país que se tornaram célebres em todo mundo como Jean Arp, Paul Klee, Hans Richter, Kurt Schwitters, Marcel Janco, M. H. Maxy e Constantin Brancusi.
Em 1924, aconteceu sua primeira exposição individual, em Bucareste, com obras de diferentes estilos que iam do construtivismo, ao cubismo e dadaísmo. No fim do ano seguinte se dá sua primeira viagem à Paris, e foi nessa ocasião que ele teve os primeiros contato com o surrealismo e com artistas como Marc Chagall, Robert e Sonia Delaunay e Man Ray. Após algumas visitas à capital francesa, onde descobre e se impressiona também com a obra do artista italiano Giorgio de Chirico, Victor Brauner se muda para Paris em 1930 com sua primeira esposa, também pintora, Margit Kosch.
Victor então passa a viver na mesma rua – rue du Moulin Vert – em que Yves Tanguy vivia. É Tanguy que o integra ao grupo surrealista. Brauner participou do 6º Salon de Superindépendants ao lado de outros membros do grupo surrealista em 1933. No ano seguinte, em dezembro, Victor tem sua primeira exposição individual em Paris na galeria Pierre Loeb. André Breton contribuiu com um texto para o catálogo da exposição: “o desejo e o medo presidem por excelência o jogo que ele joga conosco, no círculo visual muito perturbador onde a aparição luta crepuscularmente com a aparência“.1
Mesmo vivendo na França, Victor Brauner continuou em contato com artistas romenos. Entre seus amigos e pessoas com quem colaborou estão Karie Voronca, Stephen Roll, Tristan Tzara, Sasa Pana e outros. O pintor também frequentava o estúdio do escultor Constantin Brancusi. Em 1935 ele retorna à Roménia por conta de dificuldades financeiras. No ano seguinte, se junta ao partido comunista romeno, porém logo depois o artista se decepciona com o comunismo, em grande medida devido aos chamados Julgamentos de Moscou. Victor Brauner chegou mesmo a criticar a juventude surrealista de seu país denunciando seu “marxismo delirante – histeria política”.2
Nessa época, a Romênia já caminhava para a instituição de uma ditadura fascista. O anti semitismo crescia e o pintor se sentia “isolado em seu próprio país”.3 Em 1938, ele decide se exilar e se estabelecer de vez em Paris.

Em 1947, Victor Brauner participou de outra exposição surrealista, agora na galeria Maeght. Sua obra a ser exposta foi Loup-table. A lista dos artistas que acabaram se afastando do grupo surrealista pelas mais diversas razões é longa e Victor Brauner é um deles. No caso do romeno, o distanciamento foi mais formal do que realmente ideológico e metodológico e vemos sua identificação com o movimento em carta para André Breton de 1945: “o surrealismo como o único método possível dentro das orientações novas do homem em busca de uma mitologia que o livrará do fantasma do medo mais aterrorizante dos medos, aquele da solidão na vida moderna”.4
A perda do olho
Talvez um dos acontecimentos mais marcantes – senão o mais marcante – da vida de Victor Brauner – tenha sido a perda de um dos olhos. Na noite do dia 27 para o 28 de agosto de 1938, Victor Brauner tentou separar uma briga entre seus amigos – e também pintores – Oscar Domingues e Esteban Francés. Durante a confusão, uma garrafa de vidro acabou acertando Brauner que perdeu um olho. O acidente, apesar de trágico, não teria nada de muito incomum se Victor Brauner não tivesse pintado um quadro representando a si mesmo com um dos olhos machucado cerca de sete anos antes. Ainda mais surpreendentemente, Brauner havia repetido esse mesmo tema em uma outra pintura terminada dias antes do acidente.
Intitulada Autoportrait à oeil énuclée: auto retrato com olho enucleado. Há ainda o quadro Paisagem Mediterrânica de 1932 onde se pode ver uma figura que tem o olho esquerdo perfurado por uma haste. Na haste tem um prolongamento com a aparência da letra D acoplada a ela.
Pouco se sabe sobre o que teria iniciado a briga entre Domingues – era em seu apartamento, no boulevard Montparnasse, que todos estavam – e Francés. Janet Kaplan, autora de um dos maiores estudos sobre a vida e obra da artista espanhola Remedios Varo, afirma que a confusão começou por causa da própria Remédios, que estava presente no acontecimento. Em algum momento da noite de bebedeira dos quatro amigos, alguém, talvez Esteban Francés teria feito comentários negativos sobre o fato da pintora ter muitos relacionamentos amorosos, mesmo ainda sendo casada oficialmente com Gerardo Lizarraga.5 Remédios Varo e Victor Brauner acabariam se relacionando alguns meses depois quando viveram em Marselha.
Muitos dos surrealistas e o próprio Victor Brauner passaram a considerar seus auto retratos obras premonitórias, que anteciparam com exatidão aquilo que ocorreria com o surrealista anos depois. O incidente se tornou tema de conversa dos membros do círculo surrealista. Um de seus colegas, o escritor e médico Pierre Mabille, afirmou em artigo da publicação surrealista Minotaure que a perda do olho foi um sacrifício necessário para que Victor Brauner obtivesse assim poderes que o tornaram excepcional. Mabille, que cuidou de Victor Brauner depois do acidente, diz diretamente:
“o homem que eu conhecia antes do acidente era apagado, tímido, pessimista, sem ânimo depois de sua última estada na Romênia, ele é hoje livre, afirma com clareza e autoridade suas ideias, ele trabalha com um vigor novo e conquista com mais frequência seus objetivos.”6
O próprio Victor se referia ao caso como “um exemplo caso único na história da arte”7 e também como “o fato mais doloroso e importante da minha vida… essencial para o meu desenvolvimento“.8
Além do acidente, os mais de 5 anos de conflito que se iniciaram em 1939 teriam grande impacto na obra de Victor Brauner. Ao contrário da maior parte dos surrealistas, ele não conseguiu asilo nos países que recebiam a classe artística e intelectual europeia. Foi então obrigado a se manter escondido e trabalhar de maneira silenciosa e clandestina.
A Segunda Guerra mundial e período pós guerra
Durante a segunda guerra mundial, Victor Brauner refugiou-se em diversos lugares, tanto na França quanto em outros países, tendo passado pela vila Bel-Air em Marseille entre 1940 e 1941. Sua estadia maior, no entanto, se deu na Suíça na companhia do artista Michel Herz. É nesse contexto de isolamento e introspecção que Victor Brauner se volta a temas que marcarão sua produção artística mais conhecida: indagações sobre o mundo espiritual, o esoterismo, a vida após a morte, etc. Conforme o pesquisador Emerson Dionísio nos dá conta: “Brauner considerava-se um enviado do “grande mistério”, restituindo a sua arte a forte carga espiritualista de sua infância”.9
O forte antissemitismo e perseguição aos judeus também podem ter ao menos reacendido a relação de Brauner com sua propria herança e ascendencia. Em carta para André Breton em fevereiro de 1945, Brauner transparece o quanto se sentia ameaçado com o pelo nazismo: “O senhor Hitler tinha me proibido de pintar, me impedido de viver”.10
Nesse sentido, é notável a presença de símbolos e referências à cabala e à mística judaica como um todo em quadro dessa época como Arquitetura Pentacular e Taça da Dúvida. Em entrevista para Joffrey em 1961, Victor Brauner nos dá dimensão da importância que tais temas tiveram ao longo de sua carreira: “Isso é evidente… É certo que os quadros possuem quase sempre um sentido de feitiço, de contra feitiço, de magia, de atração e proteção“.11
Victor Brauner não se restringiu às pinturas e desenhos. Entre seus trabalhos tridimensionais podemos citar Nombre (1943-1945) e Double vivification (1943) que compartilham com muitas das outras obras de Brauner uma inspiração fortemente mística. Entre suas poucas obras escritas estão Promenade de 1941.
Em 1962, o próprio Brauner afirmou sobre si mesmo e sua arte, “Minha pintura é autobiográfica. Eu conto nela a minha vida. Minha vida é exemplar porque ela é universal…Ela conta também os devaneios primitivos em suas formas e em seu tempo” e “Toda minha obra é uma simulação de mitologia… O Mito do Surrealismo existe a partir do Mito do Homem do futuro“.12
Victor Brauner faleceu em Paris em 12 de março de 1966. Ele está enterrado no cemitério de Montmartre. Seu epitáfio é uma fala retirada de um de seus escritos: para mim, pintar é a vida, a verdadeira vida. MINHA VIDA. O arquivo de Victor Brauner – contendo escritos, poemas e uma grande quantidade de cartas – foi doado para a Bibliothèque Kandinsky, administrada pelo governo francês, em 1984, pela viúva do pintor.
Obras de Victor Brauner no Brasil
Em território brasileiro há pelo menos duas obras de Victor Brauner em coleções públicas. A Taça da Dúvida (Coupe de doute) de 1946 e Arquitetura Pentacular foram ambas adquiridas por Assis Chateaubriand em 1947 da galeria nova-iorquina de Julian Levy e atualmente compõem o acervo do MASP. Em artigo sobre A Taça da Dúvida, o pesquisador Emerson Gomes tece reflexões sobre a relação da obra com a arte bizantina e tradições esotéricas, referências caras a Victor Brauner como já vimos.
No pequeno artigo sobre o quadro no site do Masp, Luciano Migliaccio resume a obra: “Como uma carta de tarô vinda de uma antiguidade remota, da qual traz as marcas nas texturas, a figura possui a força simbólica dos ídolos antigos e dos brasões, pronta para ganhar vida somente aos olhos dos iniciados”.13
Em Arquitetura pentacular, por sua vez, Brauner explora uma série de símbolos da tradição da cabala. Sabemos que essa não foi a única vez que o artista fez isso. Les amoureux (1943) e Paysage méditerranéen trazem referências diretas a autores cabalísticos judeus como Eliphas Levi, cujos escritos compunham a biblioteca privada do artista romeno.
Artigos Relacionados
Bibliografia
CARABAS, Irina. Representing bodies: Victor Brauner’s hybrids, fragments and Mechanisms. Centre-Periphery – The avant-guarde and the other. N.21 2007. Aqui.
KAPLAN, Janet. Unexpected Journeys: the art and life of Remedios Varo. Abbeville Press. New York. 1994
MORANDO, Camille. Victor Brauner’s writings in/at work: Dada and Surrealist inventions of a picto-poet. Dada/Surrealism, No. 21 (2015). Aqui.
OLIVEIRA, Emerson Dionisio Gomes. Victor Brauner: interpretações de uma obra do patrimônio museal brasileiro. Visualidades. Revista do programa de mestrado em cultura visual FAVIUFG . 2010. Aqui.
OLIVEIRA, Emerson Dionisio Gomes. Arquitetura Pentacular: O universo simbólico e místico do artista romeno Victor Brauner. Revista brasileira da História das religiões. Ano I, n.2, Aqui
OLIVEIRA, Emerson Dionisio Gomes. Artista romeno, arte francesa, patrimônio brasileiro: o lugar de Victor Brauner no movimento Surrealista francês. Cadernos de História, vol. IV, n.º 2, ano 2, pp. 70-81. Aqui
ZAMANI, Daniel. The Magician Triumphant: Occultism and Political Resistance in Victor Brauner’s Le Surréaliste (1947). ABRAXAS, Special issue, n. 1, Summer 2013. Disponível no academia.edu do autor.
Artigo sobre Victor Brauner da Wikipédia em francês.
Artigo sobre as duas obras no site.
Referências
- MORANDO, Camille. Victor Brauner’s writings in/at work: Dada and Surrealist inventions of a picto-poet. Dada/Surrealism, No. 21 (2015) p. 10. ↩︎
- MORANDO, Camille. Victor Brauner’s writings in/at work… p. 11. ↩︎
- MORANDO, Camille. Victor Brauner’s writings in/at work… p. 12. ↩︎
- MORANDO, Camille. Victor Brauner’s writings in/at work… p. 20. ↩︎
- KAPLAN, Janet. Unexpected Journeys: the art and life of Remedios Varo. Abbeville Press. New York.1994. p. 67. ↩︎
- CARABAS, Irina. Representing bodies: Victor Brauner’s hybrids, fragments and Mechanisms. Centre-Periphery – The avant-guarde and the other. N.21 2007, p. 231. ↩︎
- MORANDO, Camille. Victor Brauner’s writings in/at work… p. 14. ↩︎
- KAPLAN, Janet. Unexpected Journeys: the art and life of Remedios Varo. Abbeville Press. New York. 1994. p. 67. ↩︎
- OLIVEIRA, Emerson Dionisio Gomes. Artista romeno, arte francesa, patrimônio brasileiro: o lugar de Victor Brauner no movimento Surrealista francês. Cadernos de História, Mariana (MG), v.4, p.43 – 69, set. 2007, p. 78. ↩︎
- ZAMANI, Daniel. The Magician Triumphant: Occultism and Political Resistance in Victor Brauner’s Le Surréaliste (1947). ABRAXAS, Special issue, n. 1, Summer 2013. p.108. ↩︎
- ZAMANI, Daniel. The Magician Triumphant: Occultism and Political Resistance in Victor Brauner’s Le Surréaliste (1947). ABRAXAS, Special issue, n. 1, Summer 2013. p.108. ↩︎
- MORANDO, Camille. Victor Brauner’s writings in/at work… p.16. ↩︎
- Artigo sobre as duas obras no site do MASP. ↩︎