A Casa Soturna é um livro escrito por Charles Dickens escrito em 1853. Com uma trama cheia de mistério e relações inesperadas entre seus muitos personagens, A Casa Soturna traz temas caros a Dickens como a desigualdade social, um sistema político e judiciário corrompido, a ganância mas também a solidariedade e nobreza de espírito. Alguns críticos defendem que A Casa Soturna é a melhor obra de Charles Dickens.
A escrita d’A Casa Soturna: seu contexto
Escrevendo em meados do século XIX, Charles Dickens foi um observador de todas as transformações trazidas pela Revolução Industrial. Para além da grande desigualdade social, que o autor registraria em praticamente todas as suas obras, pode-se também apontar para as novas conformações envolvendo os membros da elite inglesa. Foi durante o século XIX que a aristocracia agrária, que compunham o topo da pirâmide social na Inglaterra, foi substituída (e/ou assimilada) pela burguesia industrial e manufatureira.
Em diferentes romances da época, esse processo foi retratado por meio do casamento de personagens originários desses diferentes grupos. Um exemplo é o romance Norte e Sul (1854-1855) da colega de ofício e de trabalho de Dickens, Elizabeth Gaskell, no qual uma jovem aristocrata – e habitante do sul agrário – Elizabeth Hale, se muda para o norte cinza da fictícia Milton-Northern e acaba, após conflitos e descobertas, se casando com o manufatureiro John Thornton.1
Arranjo similar ocorre em Sybil de Benjamin Disraeli e havia sido “estreado” por Walter Scott em seu Waverley (1814).2 Em A Casa Soturna pode-se observar tanto o conflito entre esses dois diferentes grupos de elite, ilustrado pelos personagens Rouncewell, the Ironmaster (o mestre de ferro, industrial) e Sir Leicester Dedlock (sir, no caso destacando sua origem nobre), bem como a resolução (ou assimilação de um grupo pelo outro) no casamento entre Watt Rouncewell e a empregada Rosa e, principalmente, na união entre a protagonista Esther Sommerson e o médico Allan Woordcourt.3

O enredo de A Casa Soturna
Uma das características mais marcantes de A Casa Soturna é o processo judicial que, como o fio de um colar, envolve a grande parte dos personagens. Apesar da presença de advogados e da justiça em outras obras de Dickens, é em A Casa Soturna que se vê esse tema de maneira mais predominante. A posição do autor sobre o sistema judiciário e seus agentes fica clara ao longo do livro: para Charles Dickens a máquina de leis e justiça, muitas vezes, trabalha para sua própria existência e satisfação. Tal ponto fica claro principalmente no final d’A Casa Soturna. Com relação aos advogados, conforme escreveu Poon em artigo:
“Experts em viver do legados de seus clientes, de trust funds e segredos, eles não estão tão preocupados em uma profissão de confiança na qual a ética do serviço esteja acima do lucro, quanto o estão com um comércio no qual a busca por lucro é preponderante.“4
Edgar Johnson, autor de uma das maiores biografias de Dickens, afirma no prefácio de sua obra que o fio unificador de toda a carreira de Dickens era “uma análise crítica de sociedade moderna e de seus problemas”. O pesquisador, conforme nos cita Hawthorn, não entende A Casa Soturna apenas como (mais) um ataque de Dickens a diversos problemas sociais – “o sistema legal ineficiente, a preocupação inadequada com o pobre, condições sanitárias” – mas como uma acusação contra “toda a massa confusa e obscura da sociedade organizada”.
As injustiças, nessa massa confusa não era “acidentais” mas “[estavam] organicamente relacionadas à estrutura daquela sociedade”.5
Em contrapartida, o célebre escritor George Orwell não credita Dickens com força de percepção tão profunda. Orwell, segundo Hawthorn, admite que Dickens tem plena consciência de que a sociedade está essencialmente errada, mas defende que seu colega vitoriano via o grande problema como uma questão moral: “Dickens, ele afirma, ataca tais instituições como a lei e o governo parlamentar sem nunca sugerir o que ele colocaria no lugar.” Para Orwell, assim, a questão não é a sociedade, ou sistema econômico em que vivemos, mas a “natureza humana”.6 Tal posicionamento de Dickens também pode ser observado em seu Um conto de Natal de 1843.
Personagens de A Casa Soturna
Os personagens de A Casa Soturna são vários, organizados em diversos núcleos interconectados, mas apontamos a seguir os principais dentre eles:
Esther Summerson: filha ilegítima, Esther está relacionada ao processo Jardyce x Jardyce. É a protagonista que apesar das adversidades ajuda a todos ao seu redor.
John Jardynce: é também uma das partes interessadas no processo. Acaba se tornando o responsável por Richard, Ada e Esther.
Richard Carstone: beneficiário de um dos lados do caso opondo os Jardynce, ele é primo de Ada. Aos poucos, porém, Richard deixa de ser um jovem alegre e ativo e passa a colocar toda sua esperança e recursos no desenlace do processo.
Ada: Ada também está envolvida com o processo. Ao contrário de seu primo Richard, não se deixa seduzir pela esperança de fortuna futura do caso judicial.
Jo: garoto pobre e discriminado e que vive na rua. Ele vai ajudar Lady Dedlock a encontrar uma pessoa de seu passado.
Lady Dedlock: outra interessada no longo processo, a jovem senhora esconde um segredo o qual será descoberto pelo advogado do marido.

Recepção e Crítica de A Casa Soturna
Um livro quase que completamente organizado em cima da crítica do sistema judiciário de um país estaria destinado a ser notado por profissionais dessa área. A Casa Soturna recebeu críticas de advogados e juízes que viam no livro de Dickens exageros, pouco relacionados à vivência nos tribunais.
Um dos críticos da obra foi James Fitzjames Stephen, advogado, que publicou dois artigos sobre A Casa Soturna em 1857. Em um deles, intitulado “Senhor Dickens enquanto político”, publicado no Saturday Review ( fundado pelo colega de profissão Henry Maine)7, Stephen deplora “a falácia do exagero artístico” e condena o autor por ter “uma imaginação muito ativa e a mais lacrimosa e melodramática tendência mental”.8
Stephen não foi o único a desacreditar os pontos de Dickens em A Casa Soturna com base em uma suposta ignorância do autor com relação ao sistema judiciário. Em outubro de 1853, uma crítica apareceu no Bentley’s Monthly Review na qual o autor afirmava “Mas… o senhor Dickens sempre escreve com um propósito agora. E qual é a tarefa que ele se propôs a fazer em A Casa Sortuna? Nada menos do que expor as infâmias da Corte (Chancery)“. O crítico então continua e aponta as supostas falhas no conhecimento de Dickens do sistema legal. 9
Dickens, como um autor consagrado, é um dos mais estudados. São inúmeros os estudos sobre suas várias obras. A Casa Soturna já foi tema de variados estudos. Em seu Bleak House: The Critics Debate, Jeremy Hawthorn analisa os principais pontos tratados pelos muitos críticos que se debruçaram sobre esse livro de Dickens. Entre os pesquisadores citados estão T. A. Jackson, responsável pelo primeiro estudo marxista de Dickens. Jackson observa a falta de um vilão único no romance e explica tal característica:
“O vilão cuja vilania condiciona toda ação, e no fim precipita a catástrofe culminante, é A Lei, e o Interesse Togado ativamente malevolente que ela protege e tipifica.“10
Entre escritores também célebres que leram e criticaram A Casa Soturna estão T. S. Eliot. O inglês afirmou que o livro era o melhor exemplo de construção de Dickens.11 Menos favorável foi George Orwell o qual criticou em específico os personagens de Dickens. O autor de Revolução dos Bichos afirmou que eles possuem “sempre uma única postura imutável”12 sem evoluções; no que foi acompanhado por G. K. Chesterton que disse “seus personagens são sempre os mesmos ontem, hoje e sempre.”13
Adaptações
A Casa Soturna foi adaptado um verdadeiro sem-número de vezes para diversas mídias. Em 2005, houve uma série feita pela BBC com 15 episódios. O elenco traz Anna Maxwell Martin (Norte e Sul, Death comes to Pemberley e Motherland) como Ester, Carey Mullingan (Orgulho e Preconceito, Drive) no papel de Ada, Gillian Anderson (Arquivo X) como Lady Dedlock além de Charles Dance e Denis Lawson.
Artigos Relacionados
Um Conto de Natal de Charles Dickens
Contos Natalinos de Charles Dickens
As Aventuras do Senhor Pickwick de Charles Dickens
Bibliografia sobre A Casa Soturna
BURY, Laurent, « ‘For he has his pictures, ancient and modern’: Likenesses in Bleak House », Cahiers victoriens et édouardiens [En ligne], Hors-série | 2012, mis en ligne le 20 octobre 2022, URL : http://journals.openedition.org/cve/12234 ; DOI : https://doi.org/10.4000/cve.12234
CHEBIL, Sana Ayed. Urban perception and the Detective figure in Bleak House by Charles Dickens: The Labyrinth. International Journal of English Literature and Social Sciences Vol-6, Issue-6; Nov-Dec, 2021. Disponível aqui.
COHEN, Monica F. Bleak House’s Characters in Hand and Type. SEL 59, 4 (Autumn 2019): 813–853 813 ISSN 0039-3657. Disponível aqui.
DOLIN, Kieran. “Law, Literature and Symbolic Revolution: Bleak House”. Australasian Victorian Studies. (2007) 12(1) . Disponível aqui.
GALLACHER, Iain.The neglected child of Dickens’ Bleak House 名古屋学院大学論集 言語・文化篇 第 29 巻 第 1 号 pp. 53―57. Disponível aqui.
HAWTHORN, Jeremy. Bleak House: The Critics Debate. Edited by Michael Scott, Macmillan, 1987.
KUCICH, John. Reverse Slumming: Cross-Class Performativity and Organic Order in Dickens and Gaskell. Victorian Studies, Vol. 55, No. 3 (Spring 2013), pp. 471-499.
POON, Phoebe. Trust and Conscience in Bleak House and Our Mutual Friend. Dickens Quarterly. Vol. 28, No. 1, March 2011 Trust and Conscience in Bleak House and Our Mutual Friend. Disponível no academia. edu.
VANDEN BOSSCHE, Chris. Class Discourse and Popular Agency in Bleak House Vanden Bossche, Chris. Victorian Studies, Volume 47, Number 1, Autumn 2004, pp. 7-31. Disponível no academia.edu.
Referências
- VANDEN BOSSCHE, Chris. Class Discourse and Popular Agency in Bleak House Vanden Bossche, Chris. Victorian Studies, Volume 47, Number 1, Autumn 2004, pp. 7-31. p. 13. ↩︎
- VANDEN BOSSCHE, Chris. Class Discourse and Popular Agency in Bleak House Vanden Bossche, Chris. Victorian Studies, Volume 47, Number 1, Autumn 2004, pp. 7-31. p. 12. ↩︎
- VANDEN BOSSCHE, Chris. Class Discourse and Popular Agency in Bleak House Vanden Bossche, Chris. Victorian Studies, Volume 47, Number 1, Autumn 2004, pp. 7-31. p. 13. ↩︎
- POON, Phoebe. Trust and Conscience in Bleak House and Our Mutual Friend. Dickens Quarterly. Vol. 28, No. 1, March 2011 Trust and Conscience in Bleak House and Our Mutual Friend. p. 16. ↩︎
- HAWTHORN, Jeremy. Bleak House: The Critics Debate. Edited by Michael Scott, Macmillan, 1987. p. 15. ↩︎
- HAWTHORN, Jeremy. Bleak House: The Critics Debate. Edited by Michael Scott, Macmillan, 1987. p. 16. ↩︎
- DOLIN, Kieran. “Law, Literature and Symbolic Revolution: Bleak House”. Australasian Victorian Studies. (2007) 12(1). p. 14. ↩︎
- DOLIN, Kieran. “Law, Literature and Symbolic Revolution: Bleak House”. Australasian Victorian Studies. (2007) 12(1). p. 14. ↩︎
- HAWTHORN, Jeremy. Bleak House: The Critics Debate. Edited by Michael Scott, Macmillan, 1987. p.15. ↩︎
- HAWTHORN, Jeremy. Bleak House: The Critics Debate. Edited by Michael Scott, Macmillan, 1987. p.15. ↩︎
- HAWTHORN, Jeremy. Bleak House: The Critics Debate. Edited by Michael Scott, Macmillan, 1987. p. 29. ↩︎
- HAWTHORN, Jeremy. Bleak House: The Critics Debate. Edited by Michael Scott, Macmillan, 1987. p. 39. ↩︎
- HAWTHORN, Jeremy. Bleak House: The Critics Debate. Edited by Michael Scott, Macmillan, 1987. p. 81. ↩︎