A Relíquia de Eça de Queirós

A Relíquia é um livro de 1887 escrito por Eça de Queiroz. Seu enredo é a biografia do jovem Teodorico Raposo e suas desventuras. Tendo sido adotado por sua tia Maria do Patrocínio ainda criança, Teodorico cresce com a esperança de herdar a fortuna da parente, velha e carola. Para isso, o personagem se desfaz finge ser um devoto católico e esconde o máximo que pode sua vida de incredulidade e devassidão.

A Relíquia foi escrito quando Eça de Queirós já dispunha de fama e foi recebido de maneira ambígua pela crítica. Seu capítulo sobre a crucificação de Jesus é considerado polêmico tanto por seu conteúdo – com a dessacralização da vida do messias – como por sua forma – uma viagem fantástica/sonho inserido em uma obra de um autor realista. 


A escrita d’A Relíquia

Eça de Queirós escreveu seu romance no contexto das reflexões e proposições feitas por intelectuais portugueses com relação à condição econômica e social de Portugal na época. Preocupados com o que viam como um “atraso” ou “decadência” portuguesas frente a outras nações europeias ao longo do século XIX, esses intelectuais – a geração de 70 – apontaram a predominância do catolicismo como uma das causas dessa conjuntura.

As possessões ultramarinas – das quais o Brasil fez parte – e a monarquia também era, para o grupo, elementos que contribuem para a estagnação portuguesa em comparação ao desenvolvimento de nações como Inglaterra e França.

Das atividades da geração de 70, as chamadas Conferências Democráticas do Casino Lisbonense merecem destaque por seu alcance e conteúdo revolucionário e progressista.

Dentre elas, citamos aquela feita por Antero de Quental, Causas da decadência dos povos peninsulares do dia 22 de maio de 1871, a qual deixa claro as expectativas do grupo bem como o lugar dado à religião e à igreja no futuro de Portugal: “[…] o Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo: a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno“.1

Anticlericalismo tomava vulto também a partir de obras do século XIX que faziam uma exegese laica da figura de Cristo. As principais são Les mémoires de Judas (As memórias de Judas) de Petrucelli della Gattina, Vida de Jesus de David Strauss, Essência do Cristianismo de Feuerbach e Origens do Cristianismo de Renan, essa tendo sido lida por Eça de Queirós.2  O Cristo d’A Reliquia de Eça de Queirós, principalmente o capítulo da paixão de Cristo, seria a contribuição portuguesa a essa anti religiosa e anticristã das últimas décadas do século XIX.

Vista de Jerusalém usada como ilustração de A Relíquia de Eça de Queiros
Jerusalém vista do Monte das Oliveiras de Charles Théodore Frère (1880). Fonte: Met.

Características do enredo de A Relíquia

O sonho que o personagem Teodorico tem no terceiro capítulo é sem dúvida a parte que mais se destaca da obra. Rompendo com a estrutura do romance realista/naturalista, Eça de Queirós insere seu protagonista – em uma vivida viagem no tempo – de volta à Paixão de Cristo e, além disso, reconstrói em bases que fogem ao credo oficial o episódio de prisão, julgamento e morte de Jesus.

As reações a essa parte específica do romance não foram poucas e nem suaves. Tanto a mistura de gêneros literários – o típico naturalismo de Eça que já mencionamos com adições do fantástico – quanto sua releitura da passagem bíblica foram mal recebidos por parte do público e crítica (veja o item seguinte “Recepção e Impactos“).

Carlos Passero vê no terceiro capítulo uma clara influência da obra Vie de Jesus de Ernest Renan “o terceiro capítulo não é mais que a resolução estético-literária da leitura da Vie de Jesus de Renan”.3 Aparecida Bueno, em sua tese de doutorado, faz como que um trabalho de catalogação e coteja passagens d’A Relíquia com as obras laico-exegéticas de Renan, Strauss e della Gattina. A pesquisadora verifica que Eça de Queirós não apenas se inspirou em tais livros como chegou a emprestar e adaptar trechos inteiros deles, processo criativo que Aquilino Ribeiro já havia observado e denominado de “cleptomania literária”.4

A humanização de Cristo, que é mostrado completamente desprovido de seus atributos sobrenaturais e divinos, ponto principal do capítulo mais controverso d’A Reliquia, faz parte de uma série de dessacralizações empreendidas por Eça ao longo de seu livro. Desde a comparação que Teodorico faz entre a geografia da Terra Santa e de seu Alentejo natal – “De resto esse país do Evangelho, que tanto fascina a humanidade sensível, é bem menos interessante que o meu seco e paterno Alentejo”5 – até a “releitura” da oração Ave Maria, que tem na versão de Teodorico, a inglesa do barão como tema central:

Nunca roçara corpo tão belo, dum perfume tão penetrante: ela era cheia de graça, o Senhor estava com ela, e passava, bendita entre as mulheres“.6 

O ápice desse processo, ao pelo menos um de seus pontos mais fulcrais, talvez seja quando o personagem principal, ao testemunha a paixão de Cristo, ainda espantado, se intitule São Teodorico Evangelista. 

Está claro que A Relíquia não foi a primeira vez que Eça de Queirós tratou de temas religiosos e lhes aplicou seu ceticismo e interpretação. Seu O Crime do Padre Amaro, publicado em 1878, foi a ocasião em que Eça mais se dedicou à denúncia de parte do clero como atrasada, hipócrita e criminosa. Muito antes disso, ainda na juventude, Eça de Queirós já experimentava com a ficcionalização histórica.

A Relíquia de Eça de Queiros em uma edição de 1887.
Edição de A Relíquia de 1887. Fonte: O Buquineiro

Menos conhecido é seu conto A Morte De Jesus, nunca terminado, mas que tratava de temas muitos próximos à Relíquia a ponto de Ian Alexandre afirmar que o terceiro capítulo da história de Teodorico Raposo é na verdade uma versão mais ou menos acabada d’A Morte de Jesus.7 Dois anos após A Relíquia, Eça de Queirós volta, de maneira indireta, ao cristianismo (e ao Oriente) em seu O Mandarim, onde nos apresenta um diabo sedutor e monges e abades nos confins da Ásia.8

Personagens de A Relíquia

Teodorico Raposo: personagem principal, Teodorico espera que sua tia Maria do Patrocínio lhe relegue toda a sua fortuna como herança. Para isso, leva uma vida dupla: para a tia finge ser casto e religioso, mas na surdina mantém amantes e é incrédulo. Para se livrar das lembranças do caso que manteve com a acompanhante Adélia – e também provar em definitivo sua devoção – Teodorico convence a tia a bancar-lhe uma viagem para a Terra Prometida, de onde promete lhe trazer uma preciosa relíquia. 

Maria do Patrocínio: tio de Teodorico Raposo que se vê obrigada a adotá-lo após o menino ficar órfão. Retratada como uma velha carola, fria e sem sentimentos.

Adélia: a primeira acompanhante de Teodorico que o abandona por um homem mais rico. É após o fim do relacionamento dos dois que Teodorico decide viajar para a Terra Santa.

Mary: acompanhante inglesa que Teodorico conhece a caminho de Jerusalém. Ela é que, mesmo que sem a intenção, revela à tia o verdadeiro caráter de Teodorico.

Adaptação de A Reliquia de Eça de Queirós feita em 2007 para os quadrinhos por Marcatti
A Relíquia foi adaptada para o quadrinhos em 2007 por Marcatti. Fonte: Queirosianas.
Recepção e critica de A Relíquia

A Relíquia foi publicada em forma de folhetins na Gazeta de Notícias. Nas vésperas do início da publicação, o próprio jornal já antecipava a má acolhida do livro entre o clero e os católicos mais tradicionais.9 Nascido, como discutimos, como uma encarnação das críticas à má influência social da igreja, A Relíquia não passou despercebida e foi alvo de fortes reações logo após seu lançamento. Já em 1887, o romance perdeu o concurso de melhor livro daquele ano promovido pela Real Academia de Ciências.

Na verdade, o livro não obteve nenhum voto sequer. Uma das justificativas foi a de que o livro não tinha um gênero narrativo claro. Seria uma obra realista, uma farsa, uma sátira? O tom provocativo e de denúncia da hipocrisia e atraso sociais também devem, no entanto, ser considerados como razões para o fracasso do livro na disputa. Um dos membros do júri não era ninguém menos que Pinheiro Chagas, político e escritor que antes d’A Reliquia há havia discutido com o Eça em diversos artigos de imprensa.

Chagas – que chama Eça de “Glória Nacional” – critica o polêmico capítulo do sonho/viagem no tempo de Teodorico e pergunta: “Mas a que propósito vem este sonho fantástico?”.10 Entre respostas e acusações de injustiça para com sua obra, Eça de Queirós chegou a escrever em tom entre o deboche e o desaforo: “todas estas coisas locais, caseiras, lisboetas – o júri, o concurso, o prêmio – que, em Lisboa, no seu elemento próprio, me teriam interessado por lhes sentir bem a realidade, chegam-me aqui, através dos mares, já desbotadas, vagas, esfumadas, confusas, espectrais.”11

Eça de Queirós, por outro lado, não poupou palavras contra a decisão da academia e em artigo para a revista Ilustração, de Mariano Pino, compara a instituição a própria “hedionda” tia do livro: “Não ia lá, sobre todos, com as suas contas e as suas meias, D. Patrocínio das Neves de natureza tão congênere com a Academia que uma compreende a Religião exatamente como a outra compreende a literatura?…”.12 Apesar de tal crítica, Eça parece ter tido ressalvas à própria obra. Em agradecimento a Luís de Magalhães pelos elogios à Relíquia, Eça declarou em carta publicada n’A Província em 1886: 

Eu, por mim, […] não admiro pessoalmente A Relíquia. A estrutura e composição do livreco são muito defeituosas. Aquele mundo antigo está ali como um trambolho […]. O único valor do livreco está no realismo fantasista da farsa.13

Privadamente, em correspondência ao amigo Ramalho Ortigão, Eça confessa que não nutria qualquer ilusão de uma acolhida diferente ao seu livro. Na própria carta em que pede a Ramalho que inscreva A Relíquia no concurso :

“Não que haja sequer a sombra fugitiva de uma probabilidade mais magra do que eu de que me seja dado o conto [o prêmio era de um conto de réis], entre o clamor das turbas e as palmas de Temístocles, mas porque desejo gozar a atitude da Academia diante de Raposo”.14 

O amigo, a contragosto o inscreveu na competição. 

Em carta a Mariano Pina, que tinha escrito um elogio à Relíquia na revista Ilustração, Eça deixa trair, com sua ironia peculiar, uma certa decepção por não ter ganhado o prêmio: “A Relíquia é certamente um livro mal feito. As suas proporções, falta harmonia, elegância e solidez; (..) mas estes defeitos, que só podem ser sentidos por um gosto muito afinado na perene convivência das coisas da Arte, nunca poderiam provocar a condenação numa Academia que não está povoada de artistas.15

Artigos Relacionados

O Primo Basílio de Eça de Queirós

A Cidade e as Serras de Eça de Queirós

O Mandarim de Eça de Queirós

Bibliografia sobre A Relíquia de Eça de Queirós

ALEXANDRE, Ian. As CruciFicções de Eça de Queirós: vozes narrativas em A Relíquia e A Morte de Jesus. Letras de Hoje. Porto Alegre. v. 40. nº 2. p. 63-72, junho, 2005. Aqui.

BERNDT, . V.; FERRAZ. O Desevangelho de Teodorico Raposo: o riso e a desconstrução do texto bíblico em A relíquia, de Eça de Queirós. Anuário de Literatura[S. l.], v. 23, n. 2, p. 143–160, 2018. Aqui.

BUENO, Aparecida de Fátima. As Imagens de Cristo na obra de Eça de Queiroz. 2000. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas. Aqui.

CARIOCA, Claudia Ramos. O topo mefistotélico presente n’A relíquia de Eça de Queiros. Revista de Letras, v. 1, n. 26, 11. Aqui.

CARNIEL, Jean Carlos. Teodorico Raposo e os interesses burgueses em A Relíquia, de Eça de Queirós. Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, Serra Talhada, vol. 7, n. 2: 6-15, Jul/Dez. 2020. Aqui

FRANCO, Marcia Maria de Arruda. A relíquia sob o signo do fingimento. IPOTESI – Revista de Estudos Literários. v. 5, n.1 (2001). Aqui.

LOPES, Tais Soares. A Representação da mulher na Obra “A Relíquia” de Eça de Queirós. Comunicação do Simpósio mundial de Estudos de Língua Portuguesa. Pernambuco. 2019. Aqui.

LOURENÇO, António Apolinário. “Onde está ali a verdade?” O mandarim e A relíquia examinados pela crítica coeva. In: Ana Marcia Alves Siqueira José Carlos Siqueira de Souza (orgs.). A Relíquia do Mandarim. Rio de Janeiro. Oficina Raquel. 2020. 

NERY, Antonio Augusto. O Diabo em A Relíquia de Eça de Queiroz. Revista Desassossego, 1(1), 18-25. Aqui.

NERY, Antonio Augusto. A figuração do diabo em A relíquia e São Cristóvão (Eça de Queirós). XII Congresso Internacional da ABRALIC Centro, Centros – Ética, Estética  18 a 22 de julho de 2011 UFPR – Curitiba, Brasil. Aqui

NERY, Antonio Augusto.  A RELÍQUIA (EÇA DE QUEIRÓS): ANTICLERICALISMO E (ANTI) RELIGIOSIDADE PARA ALÉM DA PAIXÃO DE CRISTO. Ribanceira – Revista do Curso de Letras da UEPA. Belém. Vol. 1. n. 1. Jul-Dez. 2013. Aqui.

PASSERO, Carlos Alberto. Reflexos no oriente: aristocracia e industrialização n’A Relíquia de Eça de Queirós. Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas. n.3, p.171-183. 2000. Aqui.

SANTOS, Nilvio Ourives dos. Eça de Queirós: realidade e realismo português. Akrópolis, Umuarama, v.11, no .1, jan./mar., 2003. Aqui.

SOUSA, Marcio Jean Fialho de. Aspectos da anacorese na narrativa de Teodorico Raposo em A Relíquia Revista Digital dos Programas de Pós-Graduação do Departamento de Letras e Artes da UEFS Feira de Santana, v. 20, n. 3, p. 9-21, dezembro de 2019. Aqui.

Referências

  1. BUENO, Aparecida de Fátima. As Imagens de Cristo na obra de Eça de Queiroz. 2000. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas. p. 28. ↩︎
  2. BUENO, Aparecida de Fátima. As Imagens de Cristo na obra de Eça de Queiroz. 2000. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas. p.17. ↩︎
  3. PASSERO, Carlos Alberto. Reflexos no oriente: aristocracia e industrialização n’A Relíquia de Eça de Queirós. Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas. n.3, p.171-183. 2000.  ↩︎
  4. BUENO, Aparecida de Fátima. As Imagens de Cristo na obra de Eça de Queiroz. 2000. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas. p.145. ↩︎
  5. BUENO, Aparecida de Fátima. As Imagens de Cristo na obra de Eça de Queiroz. 2000. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas. p. 37. ↩︎
  6. BUENO, Aparecida de Fátima. As Imagens de Cristo na obra de Eça de Queiroz. 2000. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas. Item 2.2 – O erótico e o sagrado em A Relíquia. p. 48. ↩︎
  7. ALEXANDRE, Ian. As CruciFicções de Eça de Queirós: vozes narrativas em A Relíquia e A Morte de Jesus. Letras de Hoje. Porto Alegre. v. 40. nº 2. p. 63-72, junho, 2005. ↩︎
  8. Leia nosso artigo sobre o livro O Mandarim de Eça de Queirós. ↩︎
  9. NERY, Antonio Augusto. Bíblia, história e ficção. 
    A. Bíblia, história e ficção: a intertextualidade no terceiro capítulo de “A Relíquia” (Eça de Queirós). Revista de Literatura, História e Memória[S. l.], v. 5, n. 5, p. p. 193–205, 2000. p. 194. ↩︎
  10.  MÓNICA, Maria Filomena. Ensaios sobre Eça de Queirós. Relógio D’água. 2007. p. 83. ↩︎
  11. MÓNICA, Maria Filomena. Ensaios sobre Eça de Queirós. Relógio D’água. 2007. p. 85 ↩︎
  12. FRANCO, Marcia Maria de Arruda. A relíquia sob o signo do fingimento. IPOTESI – Revista de Estudos Literários. v. 5, n.1 (2001). Aqui. p. 98. ↩︎
  13. FRANCO, Marcia Maria de Arruda. A relíquia sob o signo do fingimento. IPOTESI – Revista de Estudos Literários. v. 5, n.1 (2001). Aqui. p. 97. ↩︎
  14. MÓNICA, Maria Filomena. Ensaios sobre Eça de Queirós. Relógio D’água. 2007. p. 82. ↩︎
  15. MÓNICA, Maria Filomena. Ensaios sobre Eça de Queirós. Relógio D’água. 2007. p. 84. ↩︎
Data: 1887
Autor: Eça de Queirós

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