Derrubador Brasileiro é um quadro do pintor paulista Almeida Júnior pintado em 1879 . Retratando um jovem adulto descansando e fumando após o trabalho, a tela traz o início da exploração dos tipos sociais do interior que o artista faria ao longo de toda a sua carreira.
Na época de sua produção, as elites brasileiras estavam imersas em debates sobre o que definiria o Brasil enquanto nação e, nesse sentido, qual seria o seu futuro.
Almeida Júnior assim deu sua contribuição à questão ao mesmo tempo em que celebrava esse personagem do país. O Derrubador Brasileiro pertence ao Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.
Inspiração e precedentedo Derrubador Brasileiro
Derrubador Brasileiro foi pintado durante o período que Almeida Júnior estudou em Paris. Flávia Pitta defende que Almeida Júnior foi inspirado por uma série de pintores e obras que teve a oportunidade de conhecer na capital francesa. Entre eles estão Jules Breton, particularmente seus quadros como Le Repos (O Repouso, de 1864, acervo do Musée des Beaux-Arts d’Aras), Paysanne au Repos ( Camponesa repousando, de 1873, coleção particular) e La Glaneuse (A Catadora, de 1877, do Musée d’Orsay).
Outro artista que pode ter influenciado Almeida Junior é Courbet e seus nus, entre os quais La Source (A Fonte de 1868, no Musée d’Orsay).1
Em meio a capital francesa, Almeida Júnior precisou dispor de um modelo europeu para basear seu personagem. Independente de suas características físicas, como veremos no item a seguir, Almeida Júnior tinha a intenção de representar uma pessoa bi/multiétnica.
Sobre o Derrubador Brasileiro podemos inicialmente destacar o fato de que um de seus títulos foi o de “Caboclo Brasileiro”. O quadro também foi chamado de Caboclo Brasileiro, o Caboclo no trabalho e O derrubador em repouso.2Tendo isso em mente, as possíveis mensagens e interpretações da obra são alteradas.
Fernanda Pitta mostra como o termo “caboclo”, na época de Almeida Júnior, se referia basicamente a uma pessoa indígena ou descendente de indígenas: “o significado corrente da palavra caboclo, na segunda metade do século XIX no Brasil, é associado tanto à figura do indígena “civilizado” como a do mestiço de indígena e branco (para os indígenas, aplicava-se por vezes a distinção “caboclo bravio” – também “bugres” -, e “caboclo manso” – ‘tapuias.'”3 O quadro também foi chamado de Caboclo Brasileiro, o Caboclo no trabalho e O Derrubador em repouso.
A figura está sentada e é retrata de maneira a enfatizar sua força física e energia. Muitos críticos notaram esse destaque dado ao corpo do personagem. Felix Ferreira, em 1884, por exemplo, descreveu a obra como “um bom estudo de musculatura robusta e fisionomia de homem trabalhador.”4 Representante do “caboclo” e/ou do trabalhador, O Derrubador também pode ser uma representação do próprio Brasil.
Fernanda Pitta aponta para essa hipótese em sua dissertação de doutorado:
” É legítimo observar que o Derrubador pode ser interpretado como uma alegoria. Uma alegoria do trabalhador caboclo, uma alegoria do “descanso merecido”, da “virilidade” do trabalhador rural de origem indígena, da “grandiosidade” de sua tarefa, mas também da “viabilidade” do homem mestiço.“5
A pesquisadora inscreve o personagem da obra, ou melhor – sua representação feita a partir de um olhar que tem um “misto de fascínio, medo e superioridade” – na “linhagem” celebratória que culminará no “herói sem nenhum caráter”, ou seja, Macunaíma, de Mário de Andrade.
Conforme aponta Chiarelli Almeida Júnior não foi o único a pintar uma alegoria da nação. Seu contemporâneo Pedro Américo, autor do famoso “Independente ou Morte”, pintaria anos mais tarde, em 1882, seu Carioca. Essa tradição de representações alegóricas do Brasil continuaria, conforme colocamos, com o modernismo de 1922 e mais além.6
Tal linhagem também inclui as narrativas de sonhos eróticos de Couto de Magalhães.7 A sensualidade e mesmo malandragem de Derrubador Brasileiro, foram também examinadas pelo professor e pesquisador Luciano Miggliaco, o qual afirmou:
“O mameluco de Almeida Jr. não é um lutador, um matador de feras. Cansado de abater troncos, de domar a floresta, ele se apresenta sentado numa pedra, dando baforadas de seu cigarro, com ar esperto e tranquilo de quem está gozando de um prazer animal. É o primeiro de uma série de caboclos pouco heroicos, flagrados em seus gestos diários ‘como il ramarro solto la gran fersa del dí canicolar‘, naquele pouco de sombra em que, sob um céu imóvel, busca refúgio da luz incandescente do sol tropical.”8
Interpretação
Fernanda Pitta, em sua tese de doutorado, destaca a forma física do personagem, cuja força e virilidade são marcadas. Para Pitta, a musculatura evidente e a busca por boas proporções estão relacionadas aos retratos nus estudados e reproduzidos nos ambientes acadêmicos brasileiros ( Academia Real de Belas Artes) e franceses nos quais Almeida Junior circulou.
Sua “originalidade” ou seu traço característico estaria justamente na escolha do personagem: um homem trabalhador do interior de São Paulo. Há, a pintura, um certo “apreço”, pelo trabalho braçal, pela lida que exige força e expõe o corpo a um ‘salutar fortalecimento.’9
O trabalhador em O Derrubador Brasileiro de Almeida Junior, mesmo sendo representante das classes mais baixas e também do interior, não é retratado de maneira que o inferiorize ou vitimize. E isso se aplica não só a esse personagem, mas a praticamente todos aqueles que povoam as telas de Almeida Junior.
Conforme escreve Fernanda Pitta:
“O Derrubador de Almeida não desperta compaixão, assim como não o farão os Caipiras Negaceando, nem (a nosso ver) o Caipira Picando Fumo e o personagem de Amolação Interrompida.”10
A pesquisadora defende que o quadro, em certa medida, é a contribuição de Almeida Júnior aos acalorados debates ocorridos naquela época sobre a definição do povo brasileiro, o resultado advindo da chamada “mistura das raças” e suas implicações para o futuro da nação. De maneira geral, a imigração de brancos europeus foi a solução visada pelo governo brasileiro para lidar com a falta de mão de obra, problema presente ainda durante a escravidão, e com a abolição do trabalho forçado.
O pintor, como se sabe, circulava no meio intelectual e elitizado paulista e um de seus colegas era o escritor e político Couto de Magalhães. Em sua perspectiva, os indígenas eram uma peça importante no projeto de construção do Brasil deveriam ser aculturados progressivamente e integrados.11
Em seu escrito O Selvagem. Trabalho preparatório para o aproveitamento do Selvagem e do solo por ele ocupado no Brazil de 1876, Magalhães explica como o processo que entendia como integração indígena se relacionava à imigração europeia para o Brasil:
“Talvez que com os fatos que passo a expender, compreendamos que, ao passo que gastamos quase esterilmente milhões com a colonização europeia, é triste que figurem em nossos orçamentos apenas duzentos contos para utilizar pelo menos meio milhão de homens já aclimatados e mais próprios, mesmo pelos seus defeitos e atrasos, para arcar com os miasmas de um clima intertropical como o nosso, e com a selvageria de um país ainda virgem, onde a raça branca não pode penetrar sem ser precedida por outra, que arroste e destrua, por assim dizer, a primeira braveza de nossos sertões.”12
Mesmo se fosse minoria, Couto de Magalhães não estava sozinho em sua posição. Em 1878, o Dr. Clemente Falcão Filho, também próximo de Almeida Júnior, defendia a assimilação do indígena por meio da mestiçagem e da civilização. Por um lado, Falcão Filho afirmava que se nem sempre os indígenas e seus descendentes se fixaram no trabalho da lavoura, sua permanência em tal ambiente era necessária.
Um dia, após o processo de “educação e civilização”, eles poderiam contribuir para a atividade agrícola de exportação.13
A partir de nossa própria perspectiva, do século XXI, propostas como as de Couto de Magalhães e Clemente Falcão Filho podem parecer puramente utilitárias e mesmo predatórias.
Para esses homens, assim como para muitos de seus contemporâneos, questões como a vontade própria dos indígenas e seu direito de autodeterminação não eram, muitas vezes, levados em conta (na verdade, talvez nem fosse pensadas). Fernanda Pitta argumenta que apesar disso, as ideias de Couto de Magalhães, Clemente Falcão e outros têm o mérito de ao menos considerarem a existência indígena e sua possível contribuição.
Em suas palavras: “Em relação às outras opções disponíveis para a discussão da questão indígena no leque mental e ideológico daqueles tempos – confinamento, extermínio ou simples descaso – essa parece que poderia ter sido das menos perniciosas, pois que poderia ter proporcionado condições e instrumentos de interlocução, mesmo que à revelia, que pudessem resultar num agenciamento mais autônomo desses grupos sociais.”14
Recepção e crítica
Feito em Paris, o quadro chamou a atenção de François Fertilaut. Ele se tornou conhecido por compor poemas para as diferentes pinturas expostas no Salão e também escreveu versos para o Derrubador. Seu soneto apareceu originalmente no Journal des Arts de 28 de maio de 1880.15
No dia 06 de julho de 1880, saiu no jornal A Província de S. Paulo a notícia da composição do poema. Meses depois, em 30 de novembro de 1880, o poema também foi publicado no Imprensa Ytuana. Fernanda Pitta cita em seu estudo a tradução do poema feita por Aphrodisio Baptista dos Anjos e parte do trabalho Morte e Glória de Almeida Júnior 1850-1899 de Jorge Luiz Antonio:
É interessante notar que a existência de O Derrubador Brasileiro já era conhecida em São Paulo quando o artista ainda se encontrava em Paris. Fernanda Pitta cita a nota que apareceu na Gazeta de Campinas sobre Derrubador e também outra pintura, O Remorso de Judas. Com relação à primeira, o comentário foi: ” Um correspondente [da Gazeta, na capital francesa] fala de dois quadros de J. Almeida expostos no Salão de Belas Artes de Paris: caboclo médio e preguiçoso com o machado ao lado de si, o cigarro de palha na mão.”17
Se havia uma certa expectativa com relação ao Derrubador, ela, segundo Fernanda Pitta, não se ampliou. Em seu doutorado sobre a obra de Almeida Junior, a pesquisadora notou que os “comentários da crítica ao Derrubador foram esparsos e a receptividade foi mista.”18 Ela cita, por exemplo, as declarações de Felix Ferreira, o qual viu a tela em 1882 durante uma exposição individual do pintor no Rio de Janeiro. O jornalista nota a “falsidade do colorido da epiderme”19do personagem devida, como ele sabia, ao uso de um modelo europeu. O jornalista, no entanto, elogia:
“não obstante, naquelas feições há traços característicos dos nossos íncolas: a atitude é cheia de naturalidade e a figura é de uma robustez belamente artísticas. O fundo representa uma paisagem demasiadamente carregada, um tanto árida até. Parece antes que o caboclo foi esconder-se na quebrada de um monte, escusa e raramente trilhada, do que procurou abrigo à sombra das florestas, no meio da derrubada.“20
Outro a comentar a tela foi o artista Angelo Agostini. Sob o pseudônimo de Julio Dast, e tendo visto o quadro na mesma ocasião, ele afirmou: “Há entre as suas telas quadros históricos, de gênero e estudos; e em todos eles é o Sr. Ferraz um artista seguro, e bem inspirado. O Remorso de Judas, O Repouso d’um Índio forneceram-lhe assuntos de desenho e de largura de toque.”21
Longe de unanimidades, o Derrubador não conseguiu agradar a todos. O crítico Oscar Guanabarino, por exemplo, não escondeu seu descontentamento: “o assunto do quadro e o tipo reproduzido exigiam uma composição valente, e não aquilo.”22
Localização de Derrubador Brasileiro
O Derrubador Brasileiro faz parte do acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 113. ↩︎
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 115. ↩︎
BEAUPAIRE-ROHAN, Visconde de. Dicionário de Vocábulos Brazileiros. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889. p. 23 apud PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 113. ↩︎
FERREIRA, Felix. Belas ARtes, estudos e apreciações. Introdução e notas Tadeu Chiarelli. Porto Alegre: Zouk, 2012. p. 1 apud PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 114. ↩︎
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 119. ↩︎
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 124. ↩︎
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 124. ↩︎
MIGLIACCIO, Luciano. Mostra do Redescobrimento: arte do século XIX. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, Associação Brasil 500 anos artes Visuais, 2000. p. 43 apud PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 123. ↩︎
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 113. ↩︎
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 113. ↩︎
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 138. ↩︎
MAGALHÃES, Couto de. O Selvagem. Trabalho preparatório para o aproveitamento do Selvagem e do solo por ele ocupado no Brazil, Rio de Janeiro: Typographia da Reforma, 1876, p. 82 apud PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 141-142. ↩︎
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 134. ↩︎
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 142. ↩︎
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 117. ↩︎
ANTONIO, Jorge Luiz. Morte e Glória de Almeida Júnior 1850-1899. Itu, SP: Prefeitura da Estância Turística de Itu, 1983. apud. PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 117. ↩︎
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 116. ↩︎
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 113. ↩︎
PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 113. ↩︎
FERREIRA, Felix. “Os quadros do sr. Almeida Júnior”, Correio Paulistano, São Paulo, 3 de novembro de 1882, p. 1. apud. PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 114. ↩︎
DAST, “Crônicas Fluminenses”, Revista Ilustrada, Rio de Janeiro, 1882, ano VII, n. 321, p.2. apud. PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 114. ↩︎
GUANABARINO, Oscar. “A Exposição de Bellas-Artes, II”, Journal do Commércio, Rio de Janeiro, 1 de setembro de 1884, ano 63, n. 244, p. 1. PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior. São Paulo: USP, 2013 (Tese de Doutorado), p. 114. ↩︎
Derrubador Brasileiro
Data: 1879
Origem: Paris, França
Autor: Almeida Junior
Dimensão: 227 x 182 cm
Material: Óleo sobre tela
Localização Atual: Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro