Cinco anos antes de morrer, Victor Brauner concedeu uma entrevista em que afirmou: “é evidente… É certo que os quadros possuem quase sempre um sentido de feitiço, de contra feitiço, de magia, de atração e proteção“.1 Talvez em nenhuma outra obra do romeno essa concepção esteja mais evidente. Hitler é um quadro-vudu que causa surpresa, desconforto e – para muitos – satisfação simultaneamente. A boca pregada de forma a conter a verborragia.
O nariz deformado. A orelha direita praticamente decepada enquanto a esquerda tem um martelo enfiado. Ambos os olhos vazados, o que de forma alguma deve nos surpreende: afinal, por que o pintor pouparia o ditador alemão de uma dor que ele mesmo havia sofrido apenas um ano antes?2 O detalhe das lagrimas deve ser destacado: na obra em que Victor Brauner se auto retrata sem um dos olhos (segundo alguns uma previsão, literalmente pré-visão, do próprio acidente) o pintor está sereno, digno, etéreo e não há marcas de choro; Hitler, no entanto, nos parece patético com as múltiplas e pequenas lagrimas de um lado, enquanto que do outro vemos uma lagrima, grande e solitária, palhaça mesmo.

O quadro-castigo reflete o que Victor Brauner pensava não apenas do próprio Hitler mas também da guerra, conforme o pintor escreveu em um de seus cadernos:
“O homem que tem tanto medo da imaginação é porque ele não a tem, a combate. Mas para combater a arte lhe é necessário forçar a realidade para que ela substituía a imaginação. É justamente por isso que o homem precisa da guerra. Ele constitui a mais terrível e a mais completa riqueza imaginativa da mediocridade sem imaginação. O homem tem necessidade da guerra porque ele tem mais medo do desconhecido fantástico. Com a guerra, ele acredita poder negar a arte, ele se sente fortificado por um momento. No fundo, a guerra sempre foi antipoética porque ela mata o ato sublime ao substitui-lo pelo ato estereotipado.“3
Judeu, estudioso da cabala, Victor Brauner submete Adolf Hitler à punição aos crimes e ofensas que o artista percebia como sendo publicas mas também privadas, contra o coletivo e também contra ele próprio, Victor Brauner. Aos amigos, o artista confessava os efeitos psicológicos que a guerra, a privação e a necessidade de viver escondido lhe causaram. Em carta à Sylvain Itkine de 14 de julho de 1942, na qual ele se diz dominado por uma “ansiedade [que] toma formas neurastênicas“4, o pintor se diz incapaz de trabalhar. À René Char, em uma longa carta de 3 de junho de 1943, ele diz:
“Uma espécie de paralisia, devido às dificuldades de todos os tipos que eu devo atravessar dentro de um isolamento que se serra mais e mais como uma pinça mortal, me impede de te escrever mesmo uma letra […] Uma sensação insuportável de vazio completo. E com as especulações psicológicas as mais minuciosas eu não consigo vencer o tempo “esse tempo“.5
No ano em que o conflito acabou, seis anos após pintar o quadro, Victor Brauner deixa explicito como se sentiu pessoalmente ameaçado pela politica de extermínio nazista, ao escrever para o amigo André Breton: “O senhor Hitler me impediu de pintar, me proibiu de viver“.6 Sua carta data de fevereiro de 1945. Dois meses depois, Adolf Hitler cometeria suicídio junto de sua esposa, na iminência da chegada do exército russo nos arredores do Führerbunker.
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Referencias
- ZAMANI, Daniel. The Magician Triumphant: Occultism and Political Resistance in Victor Brauner’s Le Surréaliste (1947). ABRAXAS, Special issue, n. 1, Summer 2013. p.108. ↩︎
- Victor Brauner perdeu um dos olhos em um incidente em agosto de 1938. O fato se tornou marcante já que muitos anos antes disso acontecer, Brauner havia pintado um autorretrato em que um de seus olhos aparece vazado, machucado. Você pode ler mais sobre em nosso artigo sobre Victor Brauner . ↩︎
- MORANDO, Camille. “Térapeutique [sic] de démoralisation ou contre inspiration¹” chez Victor Brauner: l’invention d’une écriture dictée par la privation et l’absence. Arts Drogués, p.149-160, 2021. parágrafo 7. ↩︎
- MORANDO, Camille. “Térapeutique [sic] de démoralisation ou contre inspiration¹”…. parágrafo 15. ↩︎
- MORANDO, Camille. “Térapeutique [sic] de démoralisation ou contre inspiration¹”…. parágrafo 15. ↩︎
- ZAMANI, Daniel. The Magician Triumphant… p. 108. ↩︎