A Cidade e as Serras de Eça de Queirós


A Cidade e as Serras se originou do conto Civilização e foi terminado em fins do ano de 1898. Narrado pelo personagem Zé Fernandes, o livro conta a história de Jacinto, rico proprietário de terras português que vivem em Paris. Apesar de viver cercado de todo luxo, tecnologia e conhecimento que o dinheiro pode comprar, Jacinto leva uma vida cada vez mais entediante e cansativa.

Uma visita às suas terras, no interior lusitano, porém, vai mudar sua perspectiva. A Cidade e as Serras foi o último livro de Eça de Queirós e foi publicado postumamente em 1901.


A Escrita de A Cidade e as Serras

A Cidade e as Serras foi o último romance escrito por Eça de Queirós. Desenvolvimento a partir do conto Civilização, que foi publicado em cinco partes na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro entre 16 e 23 de outubro de 1892.1 Até o ano em que morreu,1900, Eça trabalhou em A Cidade e as Serras, expandindo-o. Sabe-se que Eça, no entanto, não teve tempo de revisar A Cidade e as Serras completamente e coube a seu amigo, Ramalho Ortigão, a revisão final e a publicação em 1901.2

Ilustração (colagem) de A Cidade e as Serras tirada do site Fundação Eça de Queirós
Ilustração de A Cidade e as Serras. Fonte: Fundação Eça de Queirós.

Críticos e pesquisadores da obra de Eça já destacaram os traços autobiográficos de A Cidade e as Serras. É comum a leitura feita do personagem Zé Fernandes como uma encarnação da ironia e das posições políticas de Eça, principalmente, em sua última fase de produção. Por outro lado, o dandy lusitano Jacinto também pode encarnar certos aspectos de seu autor, uma vez que Eça frequentou e viveu em Paris por longos anos além de, no que tange origem social e familiar, era um homem de classe privilegiada.

Com relação às semelhanças com a figura de Zé Fernandes – seu ceticismo em relação à cidade, sua aparente valorização da terra natal e do campo – Aparecida Bueno nos oferece em sua tese de doutorado um indício de tal posição em um episódio da vida de Eça.

Segundo a pesquisadora, Eça de Queirós e seu amigo Antero de Quental, quando ainda eram jovens, conceberam no espírito de rebeldia e ateísmo, “a criação de uma ordem religiosa, a dos Mateiros, com a missão de reorganizar o mundo, valorizando a vida rural“. A missão dessa ordem religiosa de não religiosos seria a de que “essa reorganização do mundo, na forma de quietos e fecundos hortos, serviria de base a uma alta renovação religiosa.”3

Já na maturidade, depois de casado, a esposa de Eça de Queirós, Emília, herdou uma quinta chamada Santa Cruz, no Douro. Muitos consideraram a propriedade a inspiração para àquele de Jacinto, Tormes. No entanto, fica claro pela correspondência do autor, que a família nunca chegou a passar nem as férias ali. Eça considerava o imóvel “feio, muito feio”, com uma fachada “hedionda” e impróprio para receber uma família. A interpretação de que o lugar teria sido a primeira Tormes, porém, conforme explica André Sá permaneceu.4

O Enredo de A Cidade e as Serras

Osmar Oliva compara Jacinto a outro personagem de Eça de Queirós com o qual divide uma série de traços: Fradique Mendes. Ambos são belos, na flor da idade que desfrutam dos privilégios da fortuna longe do Portugal natal. A beleza e juventude, no entanto, não são as mesmas para os dois.

Enquanto que Fradique é belo e saudável, e consegue se manter saciando sua sede por conhecimento e viagens até o fim de seus dias, Jacinto se instala na capital francesa onde a rotina citadina, com suas regalias e insalubridade, vão aos poucos lhe tirando o viço, a cor, os músculos e a saúde.5 Apenas quando retorna para as serras portuguesas é que Jacinto recobra a vitalidade e mesmo virilidade. 

A jornada de volta às próprias raízes foi impressa por Eça no próprio nome do personagem, Jacinto, flor mediterrânea que cresce nas serras. Ao longo do livro, Eça compara tanto a aparência quanto a postura de Jacinto às das plantas.

Enquanto ele ainda se encontra em Paris, estressado e deprimido pela rotina social, pelo luxo e bugigangas mil que acumulara em sua casa, o autor afirma que o mesmo era como “uma planta estiolada, emurchecida na escuridão, entre tapetes e sedas” mas uma vez tendo voltado para o interior lusitano era como “Jacinto lançara raízes, e rijas, e amorosas raízes na sua rude serra.

A Cidade e as Serras em edição de 1901.
Edição de A Cidade e as Serras de 1901. Fonte: BN Leilões

Era realmente como se o tivessem plantado de estaca naquele antiquíssimo chão, donde brotara a sua raça, e o antiquíssimo húmus refluísse e o penetrasse todo, e o andasse transformando num Jacinto rural, quase vegetal, tão do chão, e preso ao chão, como as árvores que ele tanto amava.”.6

Juntamente com a leitura autobiográfica, por muito tempo predominou a leitura de que A Cidade e as Serras era um elogio ao campo e à vida interiorana, encarnados no narrador Zé Fernandes. Entre os vários autores que compartilharam de tal interpretação há por exemplo Antônio Candido que em artigo afirmou:

Por meio da caricatura e do esquema o romancista procede a uma inversão do fradiquismo e mostra como a suma sabedoria + suma potência = suma servidão. A escapatória, não há dúvida, já estava indicada desde Os Maias e insistentemente afirmada n’ A Ilustre Casa; o seu Mercúrio é o próvido Zé Fernandes, simples e bom fidalgo serra acima, de gostos chãos e necessidades modestas“.7

No entanto, essa interpretação tem sido questionada a partir de uma série de pontos de vista. Daiane Pereira, por exemplo, aponta em seu mestrado como a suposta mudança de Jacinto – sua valorização da vida no campo, seu deslumbramento com a natureza e mesmo sua preocupação com os camponeses pobres de sua propriedade – é superficial e irônica.8

Já Soraia Arabi mostra como o próprio narrador, José Fernandes, está longe de ser o exemplar e virtuoso homem do campo de certa maneira “resgata” o pobre menino rico Jacinto. A pesquisadora defende que Zé Fernandes não apenas tem uma inveja mal disfarçada de Jacinto, que o leva a uma caracterização pouco lisonjeira do amigo, mas que também está longe de ser um simples homem do campo: “É sempre com prazer que usufrui do luxo e conforto urbanos”.9 Seja na casa farta de comida e bebida de Jacinto, seja na prostituição tão acessível em meio urbano. 

André Correa de Sá advoga uma leitura mais dinâmica de A Cidade e as Serras que não se fixe demasiado em seu caráter possivelmente autobiográfico ou político. Em artigo, o pesquisador defende a possibilidade de que a mudança de Jacinto para as serras portuguesas seria talvez temporária apenas:”[…] recomendo que evitemos as correspondências estáticas habituais (Eça como Jacinto, Santa Cruz como Tormes, Eça como Reformador de Mentalidades, etc.) e tentemos comparar Tormes com o templo grego de Heidegger. E continua:

Isto é: como uma edificação concebida para ser vivida no imediato: enformando um guia de ação; traduzindo uma atitude perante a vida e não uma visão de como os conflitos da realidade se devem articular entre si num equilíbrio redentor; enfrentando o facto de que os “sistemas de filosofia, teorias do universo, conceções de sociologia” não passam de descrições temporárias que, de tempos a tempos, são substituídas por novas descrições, igualmente temporárias.10

Personagens de A Cidade e as Serras

Zé Fernandes: amigo de Jacinto, ele vive no interior de Portugal e parte em visita para Paris. 

Jacinto: rico senhor de terras de origem portuguesa, Jacinto nasceu em Paris, onde mora. Desfruta de uma vida de privilégios que, no entanto, não lhe parece satisfatória.

Grilo: empregado de Jacinto desde muitos anos. 

Joaninha: prima de Zé Fernandes que mora no interior de Portugal.

Artigos Relacionados

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A Relíquia de Eça de Queirós

O Mandarim de Eça de Queirós

Bibliografia sobre A Cidade e as Serras

ARABI, Soraia Lima. A Cidade e As Serras: uma nova escritura. Polifonia. Cuiabá EdUFMT, Nº3, p. 72-85, 1997. Aqui.

BUENO, Aparecida de Fátima. As Imagens de Cristo na obra de Eça de Queiroz. 2000. Tese (Doutorado). Universidade Estadual de Campinas. Aqui.

DE OLIVEIRA, M. F. (2015). O campo e a urbe: literatura e história em “A cidade e as serras” de Eça de Queiroz. Historiæ6(1), 215–227. Recuperado de https://periodicos.furg.br/hist/article/view/5414

DE SÁ, A. C. (2020). Uma quinta que fosse só sua: sobre a cidade e as serras. Diacrítica33(3), 20–41. https://doi.org/10.21814/diacritica.186Aqui.

MELLO, Marco Aurélio Pereira. Paisagem e Estilo N’A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós. Revista Versalete. Curitiba, Vol. 10, nº 18, jan.-jun. 2022 ISSN: 2318-1028. Aqui.

OLIVA, Osmar Pereira. A cidade e as serras – Restaurando a casa portuguesa. Unimontes Científica Nº 1 – Março – 2001. ISSN1519-2571. Aqui.

OLIVEIRA, Mari Edith Maroca de Avelar Rivelli de. A Cidade e as Serras: a odisséia bufa de um herói moderno. Revista do CESP, v. 22, n. 31, jul.-dez., 2002. Aqui.

PEREIRA, D. C. (2012). CONSIDERAÇÕES SOBRE O ORIENTE EM A CIDADE E AS SERRAS. Revista Crioula, (12). https://doi.org/10.11606/issn.1981-7169.crioula.2012.57868Aqui.

PEREIRA, Daiane Cristina. A Cidade e as Serras, Ironia e Fin-de-Siècle. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo. 2014. Aqui.

SANTOS, Giuliano Lellis Ito. Uma noção de história em A cidade e as serras de Eça de Queirós. hist. historiogr. Ouro preto. n. 18. agosto. 2015. p. 140-159. doi: 10.15848/hh.v0i18.809. Aqui.

SOUSA, S. G. de (2012). A origem oriental de Jacinto (sobre “A Cidade e as Serras” de Eça de Queirós). Moenia. 18 (2012), 489-497.ISSN: 1137-2346.   Aqui

VÁLOVÁ, Karolina. As casas das Casas nos romances Os Maias e A Cidade e as Serras de Eça de Queirós. Acta Universitatis Carolinae Philologica. Romanistica Pragensia XX, pp. 215-223. Disponível no academia.edu

Referências

  1. SANTOS, Giuliano Lellis Ito. Uma noção de história em A cidade e as serras de Eça de Queirós. hist. historiogr. Ouro preto. n. 18. agosto. 2015. p. 140-159. doi: 10.15848/hh.v0i18.809. p. 141. ↩︎
  2. MELLO, Marco Aurélio Pereira. Paisagem e Estilo N’A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós. Revista Versalete. Curitiba, Vol. 10, nº 18, jan.-jun. 2022 ISSN: 2318-1028. p. 204. 
    ↩︎
  3. BUENO, Aparecida de Fátima. As Imagens de Cristo na obra de Eça de Queiroz. 2000. Tese (Doutorado). Universidade Estadual de Campinas. p. 179. ↩︎
  4. DE SÁ, A. C. (2020). Uma quinta que fosse só sua: sobre a cidade e as serras. Diacrítica33(3), 20–41. https://doi.org/10.21814/diacritica.186. p. 26. ↩︎
  5. OLIVA, Osmar Pereira. A cidade e as serras – Restaurando a casa portuguesa. Unimontes Científica Nº 1 – Março – 2001. ISSN1519-2571. ↩︎
  6. OLIVA, Osmar Pereira. A cidade e as serras – Restaurando a casa portuguesa. Unimontes Científica Nº 1 – Março – 2001. ISSN1519-2571. p.10. ↩︎
  7. CANDIDO, Antonio. “Entre Campo e Cidade”. In: —, Tese e Antítese. São Paulo: Nacional, 1978, p.46. In: ARABI, Soraia Lima. A Cidade e As Serras: uma nova escritura. Polifonia. Cuiabá EdUFMT, Nº3, p. 72-85, 1997. p. 80. ↩︎
  8. PEREIRA, Daiane Cristina. A Cidade e as Serras, Ironia e Fin-de-Siècle. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo. 2014. ↩︎
  9. ARABI, Soraia Lima. A Cidade e As Serras: uma nova escritura. Polifonia. Cuiabá EdUFMT, Nº3, p. 72-85, 1997. p. 80. ↩︎
  10. DE SÁ, A. C. (2020). Uma quinta que fosse só sua: sobre a cidade e as serras. Diacrítica33(3), 20–41. p. 40. ↩︎
Data: 1898
Origem: Portugal
Autor: Eça de Queirós

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