O Mandarim é um conto escrito por Eça de Queirós em 1880. Veio a público em formato de folhetim, no Diário de Portugal. Em O Mandarim, Eça de Queirós experimentou com o gênero da fantasia e do fantástico que anos depois, em 1887, lançaria mão novamente em seu romance A Relíquia.
Além disso, n’O Mandarim Eça lida com temas como a cobiça, o egoísmo e a religiosidade hipócrita, características que o autor observava na sociedade portuguesa de seu tempo.
A escrita de O Mandarim
O Mandarim pode ser dividido em duas partes: a primeira e última que transcorre na Europa, em Portugal; e aquela que se passa na China. A descrição do pais asiático feita por Eça de Queirós já foi objeto de estudo de uma série de pesquisadores que costumam alertar, desde o início, que o próprio Eça nunca esteve pessoalmente naquele país. De modo que sua China derivaria daquilo que o autor leu nos livros, relatos e jornais sobre o país bem como de contatos com pessoas que estiveram lá e mesmo da observação que fez de trabalhadores chineses em Havana.
Dito isso, questiona-se a isenção e objetividade do autor e, por consequência, a extensão e maneira como seus preconceitos, romantizações e estereótipos foram traduzidos em O Mandarim. Ao longo do conto, é como se o leitor entrasse em contato com duas Chinas, que, mesmo próximas, são opostas em tudo.

Conforme aponta José Vanzelli: “as duas chinas a cidade Tártara (bairro dos letrados), que concentra a tranquilidade, os jardins e a serenidade; e a cidade Chinesa (bairro da população trabalhadora), que se apresenta aos olhos europeus como um lugar “bárbaro”“1. No referido artigo, o pesquisador demonstra como Eça de Queirós, apesar de ter dado prova de um espírito crítico com relação às visões estereotipadas do Oriente, acabou absorvendo algumas delas mesmo que em parte.
Principalmente eu seus artigos de opinião – mas também em sua correspondência diplomática – o escritor relata sua crença de que a presença chinesa é prejudicial para os trabalhadores locais, fadados a serem substituídos, além de descrever ironicamente os hábitos dos habitantes da colônias chinesas nos Estados Unidos e em Cuba, sua pobreza e falta de recursos, o total isolamento da comunidade com relação ao país quem vive, etc.
Tais pontos – desenvolvidos principalmente no artigo A Emigração como Força Civilizadora – são condensados em um dos relatórios de Eça Queirós no qual ele afirma “a heterogenia das raças não comporta fusão“.2 Em O Mandarim há como que uma transposição dessas ideias e pontos de vista quando acompanhamos o protagonista por ruas imundas apinhadas de pessoas miseráveis, crianças desnutridas e corpos em decomposição. É, enfim, essa China “Bárbara” que acaba por atentar contra a vida de Teodoro.

Por outro lado, Eça de Queirós não deixou de apontar e ironizar as ideias preconcebidas sobre o oriente tão comuns no seu tempo. Em muitos artigos Eça discutiu a presença colonizadora europeia no oriente. Em seu famoso escrito de 1894, “Chineses e japoneses”, Eça de Queiros comenta seu próprio entendimento das culturas chinesa e japonesa e os desdobramentos que se seguiriam, em sua opinião, à guerra sino-japonesa que se desenrolava na época.
O autor começa por criticar compreensões estereotipadas daqueles dois países e afirma:
“Mas esses povos da extrema Ásia, por ora só os conhecemos pelos lados exteriores e excessivos do seu exotismo. Com certos traços estranhos de figura e trajo, observados em gravuras, com detalhes de costumes e cerimônias aprendidos nos jornais (artigo Variedades) e, sobretudo, com o que vemos da sua arte, toda caricatural ou quimérica – é que nós formamos a nossa impressão concisa e definitiva da sociedade chinesa e japonesa.”3
Eça desenvolve seu argumento e continua, criticando tal compreensão: “Que por trás […] de todo o exotismo, existam sólidas instituições sociais e domésticas, uma velha e copiosa literatura, uma intensa vida moral, fecundos métodos de trabalho, energias ignoradas, o europeu mediano não o suspeita.“4. E, ele conclui:
“[…] Mas que os Chineses tenham só defeitos ou só qualidades, o certo e que arranjaram a seu modo uma civilização que possui sem dúvida uma força prodigiosa, pois que tem sobrevivido a todas as formas de civilizações criadas pelo gênio da raça ariana: e que possui decerto também uma grande doçura, porque o tema invariável e secular da literatura chinesa, desde as máximas dos filósofos até às canções dos lírios, é celebrar a inefável e incomparável felicidade de ser chinês, de viver na China!“.5
Particularidades do enredo de O Mandarim
Já de início, o título do conto é característico e mesmo intrigante. Todo o enredo do conto se centra na figura de Teodorico e suas desventuras. Podemos lembrar, claro, que o Mandarim – ou melhor, sua morte – é o gatilho inicial da reviravolta na vida de Teodorico bem como a razão pela qual o português se dirige à China. Mas ele mesmo, o mandarim, é pouco ou nada explorado enquanto personagem.
Em artigo sobre o conto, Vera Lucia Dietzel trás uma série de usos em obras literárias de expressões envolvendo “mandarim” do século XIX. Diversos livros acabaram dando origem à expressão “tuer le mandarin”, matar o mandarim, que significa enriquecer de maneira inescrupulosa. Algumas delas são O pai Goriot, de Balzac; Un mandarin, de Auguste Vitu; L’héritier du mandarin, de Urban Didier.
Tais títulos fazem referências à ” exploração dos chineses de Macau exportados em massa à Cuba para construir ferrovias e trabalhar nas plantações de açúcar”. Eça de Queirós havia sido diplomata em Havana por cerca de 2 anos, entre 1872 e 1874, e trabalhou com o tema do mandarim que outros escritores para, de certa maneira, registrar aquilo que testemunhou na ilha.6
Em artigo dedicado especificamente ao tema, Batalha apresenta uma referência ainda mais antiga à “morte do mandarim” no livro “O gênio do Cristianismo” escrito na década de 1790 por Chateaubriand no qual podemos ler: “Ó consciência! Serias-tu apenas um fantasma da imaginação ou o medo do castigo dos homens? Eu me interrogo; faço-me essa pergunta: Se tu pudesses, por um simples desejo, matar um homem na China e herdar a sua fortuna na Europa, com a convicção sobrenatural que nunca ninguém o saberia, consentirias em formar esse desejo?”.7 O próprio Machado de Assis, em 1884, exploraria o tema em seu conto O Enfermeiro.
Uma das características mais marcantes de O Mandarim é seu estilo misto entre o realismo/naturalismo explorado por Eça em outras obras com elementos da fantasia, do não-real. Em carta para o editor da revista francesa Revue Universelle, Eça explicita tal característica de seu conto dizendo que o mesmo era fantástico: pertencente ao sonho e não à realidade, inventado e não observado.8
O escritor continua a correspondência explicando que esse elemento de imaginação, de sonho, é, ao seu ver, típico de Portugal. O que atrai os lusitanos, diz Eça, é ” as emoções excessivas traduzidas com um grande esplendor plástico de linguagem” e conclui: “Nós [os portugueses] somos homens da emoção, não da razão“.9

Recepção de O Mandarim
O Mandarim foi escrito em apenas um mês, durante as férias do ano de 1880 que Eça passou na França. Publicado no Diário de Portugal, o conto na verdade apareceu como um substituto do livro Os Maias. Eça de Queirós havia se comprometido com a escrita de um romance, Os Maias, a ser publicado no jornal. No entanto, se deu conta, já com o livro iniciado, que seria preciso desenvolvê-lo mais o que fugiria da estrutura do Diário. Como forma de compensação, Eça escreveu O Mandarim.
Depois de alguns meses, já no ano de 1881, o escritor discute com seu editor, Ernesto Chardron, a realização de uma edição de luxo para O Mandarim. Chardron no entanto, destaca que o conto não tinha sido necessariamente um sucesso de vendas. Em carta, Eça de Queirós não parece surpreso e responde, chamando sua obra de “pequena fantasia”:
“Estimo que o Mandarim não tivesse grande sucesso. Se o público fosse a fazer espalhafato para essa pequena fantasia — então que reservaria para as obras sérias? É necessário em tudo proporção.“10
Desde seu lançamento, o Mandarim dividiu o público e provocou reações diversas. Parte das críticas não acolheu bem a incursão de Eça para fora do realismo/naturalismo de obras anteriores com o Primo Basílio e denunciou os elementos fantásticos do conto. Reis Dâmaso, na resenha sobre O Mandarim publicada no jornal Vanguarda, Semanário Republicano Federal, afirma:
“O último livro do sr. Eça de Queiroz peca pelos seus processos atrasadíssimos dando-nos a ideia de uma novela cavaleiresca; cai pela base a sua tese porque se funda no impossível, porque é uma obra de pura idealização quando há tanto que estudar nos domínios da realidade”.11
Teófilo Braga, por sua vez, é taxativo: “[Eça de Queirós] imprimiu a sua feição completa nos dois primeiros romances, verdadeiramente extraordinários, os que se seguiram, Mandarim, Relíquia, Maias, não têm profundidade”.12
Por outro lado, os admiradores de Eça teceram elogios ao conto, mais ou menos contidos. Luís de Magalhães, em texto para a Revista Científica e Literária, afirma que a obra é “um descanso, um desaforo momentâneo no áspero estudo da realidade humana”. Por fim, Silva Pinto, definiu O Mandarim como “simplesmente formidável“.13
Artigos Relacionados
O Primo Basílio de Eça de Queirós
A Cidade e as Serras de Eça de Queirós
Bibliografia sobre O Mandarim
BATALHA, Maria Cristina. O Motivo do Mandarim Assassinado: Eça de Queirós e Machado de Assis. Convergência Lusíada n. 32, julho – dezembro de 2014. Aqui.
CHACHAM, Vera. Eça no Egito: Encanto e Desencanto da Cidade Oriental. Boletim do CESP – v. 19, n. 25 – jul./dez. 1999. Aqui.
DIETZEL, Vera Lúcia. Reflexões em torno do discurso fantástico: O Madarim de Eça de Queirós. Uniletras 22, dezembro de 2000. Aqui.
GAMBA, Ana Paula Foloni. Prólogo e prefácio em O Mandarim (Eça de Queirós): um roteiro de leitura. Palimpsesto. nº 8. Ano 8. 2009. Aqui
GARMES, Helder. VANZELLI, José Carvalho. Eça de Queirós, a China e o Brasil. Itinerários, Araraquara, n. 44, p. 229-246, jan./jun. 2017. Aqui.
LARA, Dalila Andrade. Representações do espaço fantástico do Oriente sob a ótica ocidental: uma análise de O Mandarim e A Relíquia de Eça de Queirós. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia. 2012. Aqui.
LOURENÇO, António Apolinário. “Onde está ali a verdade?” O mandarim e A relíquia examinados pela crítica coeva. In: Ana Marcia Alves Siqueira e José Carlos Siqueira de Souza (orgs.). A Relíquia do Mandarim. Rio de Janeiro. Oficina Raquel. 2020. Aqui
VANZELLI, José Carvalho. Uma leitura da China em “Chineses e Japoneses” e O Mandarim de Eça de Queirós. Estação Literária.Londrina, Volume 10B, p. 126-141, jan. 2013. Aqui
VANZELLI, José Carvalho. As representações da China em O Mandarim e o (não) diálogo entre Ocidente e Oriente. In: Giuliano Lellis Ito Santos; José Carvalho Vanzelli; Marcio Jean Fialho de Sousa. (Org.). A obra de Eça de Queirós por leitores brasileiros: ensaios do Grupo Eça. 1ed.São Paulo: Terracota Editora, 2015, v. 1, p. 51-71. Aqui.
Referências
- VANZELLI, José Carvalho. Uma leitura da China em “Chineses e Japoneses” e O Mandarim de Eça de Queirós. Estação Literária Londrina, Volume 10B, p. 126-141, jan. 2013. p.138. ↩︎
- VANZELLI, José Carvalho. Uma leitura da China em “Chineses e Japoneses” e O Mandarim… p. 139. ↩︎
- GARMES, Helder. VANZELLI, José Carvalho. Eça de Queirós, a China e o Brasil. Itinerários, Araraquara, n. 44, p. 229-246, jan./jun. 2017, p. 234. ↩︎
- GARMES, Helder. VANZELLI, José Carvalho. Eça de Queirós, a China e o Brasil… p. 235. ↩︎
- GARMES, Helder. VANZELLI, José Carvalho. Eça de Queirós, a China e o Brasil… p. 235. ↩︎
- DIETZEL, Vera Lúcia. Reflexões em torno do discurso fantástico: O Madarim de Eça de Queirós. Uniletras 22, dezembro, 2000, p. 56. ↩︎
- BATALHA, Maria Cristina. O Motivo do Mandarim Assassinado: Eça de Queirós e Machado de Assis. Convergência Lusíada n. 32, julho – dezembro de 2014, p. 1 e 2. ↩︎
- LARA, Dalila Andrade. Representações do espaço fantástico do Oriente sob a ótica ocidental: uma análise de O Mandarim e A Relíquia de Eça de Queirós. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia. 2012. p. 48 ↩︎
- GAMBA, Ana Paula Foloni. Prólogo e prefácio em O Mandarim (Eça de Queirós): um roteiro de leitura. Palimpsesto. nº 8. Ano 8. 2009, p. 13. ↩︎
- LOURENÇO, António Apolinário. “Onde está ali a verdade?” O mandarim e A relíquia examinados pela crítica coeva. In: Ana Marcia Alves Siqueira e José Carlos Siqueira de Souza (orgs.). A Relíquia do Mandarim. Rio de Janeiro. Oficina Raquel. 2020. p. 131. ↩︎
- LOURENÇO, António Apolinário. “Onde está ali a verdade?”… p. 134. ↩︎
- LOURENÇO, António Apolinário. “Onde está ali a verdade?”… p. 134, nota 7. ↩︎
- LOURENÇO, António Apolinário. “Onde está ali a verdade?”… p. 135. ↩︎